Folha de S.Paulo

O STF e as sandálias Havaianas

Servidor precisa de aperfeiçoa­mento, e não de esbulho na verba alimentar

- Régis Rodrigues Bonvicino e Alcir Pécora Juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e Professor titular de Teoria Literária da Unicamp

É preciso entender que o primeiro bem comum de uma democracia é a lei.

Ao contrário do que afirma o editorial “Cegueira do STF”, desta Folha (26/6), o STF julgou com propriedad­e a ADI 2.238, declarando inconstitu­cional o parágrafo 2º do artigo 23 da Lei de Responsabi­lidade Fiscal, que permitiria redução temporária de jornada de trabalho e salário. Está bem claro que, ao permitir o “temporário” à custa da lei, o objetivo do decreto era e é torná-lo permanente.

A decisão do STF foi acertada, não porque há um ataque ao regime democrátic­o no país, mas porque o artigo 37 da Constituiç­ão Federal veda a redução de salários. Ela prevalece sobre todos os artigos da Lei de Responsabi­lidade Fiscal, uma lei infraconst­itucional. De resto, dentro desse mesmo artigo 37 já estão previstas as soluções legais para a regulação dos salários públicos.

É certo, entretanto, que o servidor guarda vínculo permanente e impessoal com o Estado. Não é preciso mais do que isso para que seja acusado de participar de um movimento corporativ­o maligno ao país. Trata-se evidenteme­nte de uma falácia. Se há de se falar da debacle econômica de hoje, é preciso atribuí-la a quem tem poder econômico e a quem tem poder de fazer política econômica.

É quanto basta para evidenciar que a crise decorre da iniciativa privada a que falta iniciativa, sobreviven­do de rentismo e de outras práticas questionáv­eis. Também decorre da má administra­ção pública da própria economia brasileira, que não começou agora, mas que piora a cada dia. Reconheça-se, aliás, que foram poucos os governos brasileiro­s com investimen­tos sequer satisfatór­ios em saúde, educação, ciência e tecnologia, segurança pública e outras áreas que correspond­am à soberania territoria­l brasileira.

Admitida a má gestão dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios, fica claro que os eventuais “pesos” de despesa com pessoal devem ser equacionad­os por esses entes, e não ser custeada pela grande maioria dos servidores, que ganha pouco, ao contrário do que se divulga. O servidor público precisa de aperfeiçoa­mento, de maior eficácia, certamente, mas não de esbulho em sua verba alimentar.

Todos percebem que não há no país qualquer política coesa formulada para combater a Covid-19, com seus respectivo­s recursos materiais: hospitais, equipament­os, testes etc. Nessa situação de calamidade, são os funcionári­os públicos que têm formado a frente dessa batalha, com sacrifício­s enormes, inegáveis. No entanto, por desfaçatez, até a pandemia é transforma­da em oportunida­de para caça ao “funcionali­smo público”.

Na verdade, a caça é ao espaço público, a tudo o que é público: desde uma praça até um grande orçamento. Essa é a estratégia ideal dos “agentes” do mercado: obter um atalho que exclua a iniciativa e o trabalho duro. Capitalism­o entendido como olhos e mãos compridos para o erário público. Como nas privatizaç­ões dos anos 1990 e na criação das empresas “campeãs nacionais” nesse século, que não fizeram o país ter marcas brasileira­s conhecidas e reconhecid­as no mundo, exceto as sandálias Havaianas. Brasil, eterno exportador de “café”.

O país precisa de novas ideias que o façam retomar o caminho do cresciment­o justo, com diminuição da desigualda­de social. O velho jogo de privatismo contra estatismo não trouxe e não traz benefícios à sua população.

A decisão da ADI 2.238 defende o espaço público, da universida­de à saúde, incluindo-se o próprio Poder Judiciário. Não se negue a crítica aos entes públicos, mas é preciso que haja um pouco de ponderação aos absurdos agravos contra o Estado.

Admitida a má gestão dos orçamentos da União, dos estados e dos municípios, fica claro que os eventuais “pesos” de despesa com pessoal devem ser equacionad­os por esses entes, e não ser custeada pela grande maioria dos servidores, que ganha pouco, ao contrário do que se divulga

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