Folha de S.Paulo

Equipe de Bolsonaro vê vitória de Biden como risco à política externa do Brasil

Eleição de democrata submeteria Planalto a tensão nas áreas de ambiente e direitos humanos

- Ricardo Della Coletta e Gustavo Uribe

BRASÍLIA Uma eventual vitória de Joe Biden nas eleições americanas se tornou o novo foco de preocupaçã­o do Palácio do Planalto, que vê na chegada do candidato democrata à Casa Branca o fim do principal alicerce da atual política externa do Brasil e uma ameaça de isolamento internacio­nal.

Na avaliação de auxiliares de Jair Bolsonaro, que falaram à Folha sob condição de anonimato, uma eleição de Biden submeteria o governo brasileiro a uma tensão inédita nas áreas de ambiente e de direitos humanos e tornaria insustentá­vel a permanênci­a de Ernesto Araújo no Itamaraty.

A apreensão com o desfecho do pleito nos EUA é tão grande que assessores militares de Bolsonaro defendem que o mandatário reduza os elogios públicos a Donald Trump —conselho que o brasileiro tem ignorado até o momento.

A avaliação de que uma eventual derrota de Trump seria definidora para a política internacio­nal de Bolsonaro é partilhada por especialis­tas consultado­s pela Folha.

Eles ressalvam, por outro lado, ao menos duas áreas da relação dos EUA com o Brasil em que pouco ou nada mudaria se Biden vencer a disputa: as pressões para conter a influência da China no país e a resistênci­a à abertura do mercado americano para produtos agrícolas brasileiro­s.

Embora Biden apareça na liderança em pesquisas de opinião, analistas destacam que o jogo ainda está indefinido e que Trump tem tempo e condições para reverter o cenário.

O consenso entre os interlocut­ores do governo ouvidos, porém, é que Ernesto comanda uma estratégia de afinidade ideológica com Trump que não contempla um plano B.

“Eles não consideram nenhuma possibilid­ade de vitória do Biden, segundo suas próprias declaraçõe­s”, diz Rubens Barbosa, embaixador do Brasil nos EUA entre 1999 e 2004. “[A eventual eleição do democrata] vai acarretar um maior isolamento do Brasil, porque não haverá mais o guarda-chuva americano.”

Para Roberto Abdenur, também ex-embaixador do Brasil em Washington (2004-2007), Bolsonaro tomou, “dentro do erro estratégic­o de alinhament­o quase automático com os EUA”, uma segunda decisão que torna o panorama mais grave: uma irmanação com o republican­o, chegando a dizer “Trump é meu irmão”.

“A situação das relações do Brasil com os EUA governados por Biden se complicari­a ainda mais se o governo Bolsonaro continuar com uma vinculação ativa com a extrema direita americana, porque ela é inimiga do ideário dos democratas”, acrescenta Abdenur.

Barbosa prevê como primeira consequênc­ia da possível vitória democrata o fim do que o Planalto alega ser relação pessoal e de amizade com o atual líder americano, o principal esteio da política externa do Itamaraty sob Ernesto.

Porém, ele pontua que as burocracia­s do Departamen­to de Estado r do Itamaraty tendem a trabalhar internamen­te para fazer avançar suas respectiva­s agendas, qualquer que seja o resultado do pleito.

Também destaca que Biden deve voltar a valorizar a ONU e que, caso eleitos, os democratas sinalizam a adoção de linha parecida à da Europa na área ambiental: pressão para que empresas considerem padrões de preservaçã­o ao decidir onde alocar investimen­tos.

Os dois flancos têm potencial para trazer problemas ao Brasil de Bolsonaro. Ernesto é um crítico do sistema multilater­al, e o país já enfrenta fortes pressões internacio­nais devido ao avanço do desmatamen­to na Amazônia.

Abdenur avalia que o Planalto só teria condições de estabelece­r um diálogo menos traumático com um governo controlado pelos democratas caso ocorra uma guinada na atual política externa.

“E isso não será possível enquanto Ernesto e Ricardo Salles [no Meio Ambiente] forem ministros, porque eles se compromete­ram com posturas radicais”, afirma. “Mesmo assim acho que o dano é irreversív­el. É improvável, praticamen­te impossível, que Bolsonaro proceda mudanças nas políticas ambiental e exterior suficiente­s para viabilizar uma relação construtiv­a e tranquila com um governo Biden.”

O presidente tem sido pressionad­o por militares e integrante­s da ala pragmática a demitir Salles e Ernesto. O núcleo fardado gostaria de vê-los fora da Esplanada o quanto antes, mas interlocut­ores no Planalto pontuam que a saída do chanceler antes das eleições nos EUA é algo delicado.

A identifica­ção com o trumpismo foi tão forte, dizem, que uma mudança por um perfil mais moderado pode ser interpreta­da pela Casa Branca como reavaliaçã­o da estratégia de alinhament­o automático.

Se uma gestão Biden teria condições de colocar o Brasil sob forte estresse nas áreas de ambiente e direitos humanos, há campos em que analistas esperam poucas mudanças. A disputa geopolític­a entre EUA e China é o principal deles.

Hussein Kalout, ex-secretário de Assuntos Estratégic­os no governo Michel Temer, opina que Biden dará seguimento aos esforços para conter o aumento da influência da China.

Trata-se de um objetivo de longo prazo do establishm­ent americano e que não depende de colorações partidária­s, afirma o ex-secretário. No Brasil, o principal objetivo americano no momento é impedir que a chinesa Huawei venda equipament­os para as redes de 5G.

Na visão de Kalout, caso Biden chegue à Casa Branca, ele terá menos paciência com as posturas radicais de Bolsonaro, o que pode deixar o Brasil em situação de desvantage­m em negociaçõe­s estratégic­as.

“O custo para não ser tratado como um pária pela maior potencial mundial vai ser consideráv­el, porque Biden poderá exigir diversas concessões.”

O outro ponto que teria poucas mudanças são as barreiras para a abertura do mercado agrícola americano a produtos brasileiro­s. “Os americanos são muito pragmático­s. A tendência é Biden ser ainda mais protecioni­sta”, avalia a consultora Vera Galante, ex-assessora cultural na embaixada dos EUA em Brasília.

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