Equipe de Bolsonaro vê vitória de Biden como risco à política externa do Brasil
Eleição de democrata submeteria Planalto a tensão nas áreas de ambiente e direitos humanos
BRASÍLIA Uma eventual vitória de Joe Biden nas eleições americanas se tornou o novo foco de preocupação do Palácio do Planalto, que vê na chegada do candidato democrata à Casa Branca o fim do principal alicerce da atual política externa do Brasil e uma ameaça de isolamento internacional.
Na avaliação de auxiliares de Jair Bolsonaro, que falaram à Folha sob condição de anonimato, uma eleição de Biden submeteria o governo brasileiro a uma tensão inédita nas áreas de ambiente e de direitos humanos e tornaria insustentável a permanência de Ernesto Araújo no Itamaraty.
A apreensão com o desfecho do pleito nos EUA é tão grande que assessores militares de Bolsonaro defendem que o mandatário reduza os elogios públicos a Donald Trump —conselho que o brasileiro tem ignorado até o momento.
A avaliação de que uma eventual derrota de Trump seria definidora para a política internacional de Bolsonaro é partilhada por especialistas consultados pela Folha.
Eles ressalvam, por outro lado, ao menos duas áreas da relação dos EUA com o Brasil em que pouco ou nada mudaria se Biden vencer a disputa: as pressões para conter a influência da China no país e a resistência à abertura do mercado americano para produtos agrícolas brasileiros.
Embora Biden apareça na liderança em pesquisas de opinião, analistas destacam que o jogo ainda está indefinido e que Trump tem tempo e condições para reverter o cenário.
O consenso entre os interlocutores do governo ouvidos, porém, é que Ernesto comanda uma estratégia de afinidade ideológica com Trump que não contempla um plano B.
“Eles não consideram nenhuma possibilidade de vitória do Biden, segundo suas próprias declarações”, diz Rubens Barbosa, embaixador do Brasil nos EUA entre 1999 e 2004. “[A eventual eleição do democrata] vai acarretar um maior isolamento do Brasil, porque não haverá mais o guarda-chuva americano.”
Para Roberto Abdenur, também ex-embaixador do Brasil em Washington (2004-2007), Bolsonaro tomou, “dentro do erro estratégico de alinhamento quase automático com os EUA”, uma segunda decisão que torna o panorama mais grave: uma irmanação com o republicano, chegando a dizer “Trump é meu irmão”.
“A situação das relações do Brasil com os EUA governados por Biden se complicaria ainda mais se o governo Bolsonaro continuar com uma vinculação ativa com a extrema direita americana, porque ela é inimiga do ideário dos democratas”, acrescenta Abdenur.
Barbosa prevê como primeira consequência da possível vitória democrata o fim do que o Planalto alega ser relação pessoal e de amizade com o atual líder americano, o principal esteio da política externa do Itamaraty sob Ernesto.
Porém, ele pontua que as burocracias do Departamento de Estado r do Itamaraty tendem a trabalhar internamente para fazer avançar suas respectivas agendas, qualquer que seja o resultado do pleito.
Também destaca que Biden deve voltar a valorizar a ONU e que, caso eleitos, os democratas sinalizam a adoção de linha parecida à da Europa na área ambiental: pressão para que empresas considerem padrões de preservação ao decidir onde alocar investimentos.
Os dois flancos têm potencial para trazer problemas ao Brasil de Bolsonaro. Ernesto é um crítico do sistema multilateral, e o país já enfrenta fortes pressões internacionais devido ao avanço do desmatamento na Amazônia.
Abdenur avalia que o Planalto só teria condições de estabelecer um diálogo menos traumático com um governo controlado pelos democratas caso ocorra uma guinada na atual política externa.
“E isso não será possível enquanto Ernesto e Ricardo Salles [no Meio Ambiente] forem ministros, porque eles se comprometeram com posturas radicais”, afirma. “Mesmo assim acho que o dano é irreversível. É improvável, praticamente impossível, que Bolsonaro proceda mudanças nas políticas ambiental e exterior suficientes para viabilizar uma relação construtiva e tranquila com um governo Biden.”
O presidente tem sido pressionado por militares e integrantes da ala pragmática a demitir Salles e Ernesto. O núcleo fardado gostaria de vê-los fora da Esplanada o quanto antes, mas interlocutores no Planalto pontuam que a saída do chanceler antes das eleições nos EUA é algo delicado.
A identificação com o trumpismo foi tão forte, dizem, que uma mudança por um perfil mais moderado pode ser interpretada pela Casa Branca como reavaliação da estratégia de alinhamento automático.
Se uma gestão Biden teria condições de colocar o Brasil sob forte estresse nas áreas de ambiente e direitos humanos, há campos em que analistas esperam poucas mudanças. A disputa geopolítica entre EUA e China é o principal deles.
Hussein Kalout, ex-secretário de Assuntos Estratégicos no governo Michel Temer, opina que Biden dará seguimento aos esforços para conter o aumento da influência da China.
Trata-se de um objetivo de longo prazo do establishment americano e que não depende de colorações partidárias, afirma o ex-secretário. No Brasil, o principal objetivo americano no momento é impedir que a chinesa Huawei venda equipamentos para as redes de 5G.
Na visão de Kalout, caso Biden chegue à Casa Branca, ele terá menos paciência com as posturas radicais de Bolsonaro, o que pode deixar o Brasil em situação de desvantagem em negociações estratégicas.
“O custo para não ser tratado como um pária pela maior potencial mundial vai ser considerável, porque Biden poderá exigir diversas concessões.”
O outro ponto que teria poucas mudanças são as barreiras para a abertura do mercado agrícola americano a produtos brasileiros. “Os americanos são muito pragmáticos. A tendência é Biden ser ainda mais protecionista”, avalia a consultora Vera Galante, ex-assessora cultural na embaixada dos EUA em Brasília.