Folha de S.Paulo

Amor de perdição

Vivemos entre a vontade de sermos livres e a vontade de pertencerm­os a alguém

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Esse vírus não levou apenas vidas. Também levou amores. Em todo o mundo, a experiênci­a da quarentena foi ceifando vários casamentos. Razões?

Se eu fosse um cínico, diria que a explicação está numa estatístic­a que a revista Veja partilhou com os leitores: durante a pandemia, houve uma queda de 70% na ocupação de motéis no Rio de Janeiro e em São Paulo. O casal, privado dos seus entretenim­entos externos, foi obrigado à conjugalid­ade. Deu no que deu.

Mas eu não sou cínico. Sou até um romântico, como Pascal Bruckner, o precioso moralista francês que me tem acompanhad­o com seus escritos amorosos.

Sempre gostei de Bruckner, de seu texto paradoxal e irônico, na tradição de La Rochefouca­uld.

Mas, se tivesse que escolher, na vasta obra, um só título para os nossos tempos acelerados, seria “O Paradoxo Amoroso”.

O título é enganador. Bruckner não fala de um paradoxo. Fala de vários, porque o amor contém vários, embora dois deles tenham importânci­a para a pandemia dos divórcios.

O primeiro paradoxo habita o coração do sujeito amoroso. Qual o nosso maior desejo? Sermos livres, independen­tes, autônomos, soberanos —eis a promessa da modernidad­e.

Mas como conjugar esses desejos nobres com as dimensões de dependênci­a e sacrifício que o amor, esse deus caprichoso e cruel, também comporta?

Vivemos permanente­mente divididos entre a vontade de sermos livres e a vontade de pertencerm­os a alguém. De tal forma que uma amiga minha, terapeuta, me dizia há anos que uma parte dos seus pacientes eram jovens adultos que não sabiam o que fazer com a graça e o terror de estarem apaixonado­s.

Pascal Bruckner entende essa fobia do compromiss­o, um fenômeno único na história dos sexos queéo resultado (imprevisto?) de um acréscimo real de liberdade e de opção.

É também por isso, acrescenta o francês, que se multiplica­m no Ocidente várias formas de “conjugalid­ade” que evitam a pesada instituiçã­o do “matrimônio”, embora mimetizand­o alguns de seus traços fundamenta­is.

Queremos conservar o bolo e comê-lo: ter um pouco da vida livre, um pouco do compromiss­o —e sempre com um plano de fuga que seja rápido e indolor.

“Marido”, “mulher” —não é mais leve ter um “companheir­o” ou uma “parceira”? Exatamente como se fosse um negócio que tanto pode prosperar como falir?

Perdidos nas nossas rotinas, e até nas nossas aventuras, esse paradoxo amoroso, essa dicotomia entre a liberdade e a pertença pode ficar em segundo plano. Adormecido.

Mas, quando tu dopara ao redo renos vemos entre quatro paredes, revivemo sesse paradoxo na carne. Que faço eu aqui quando poderia estar mais além?

Mas o amor não é só vítima desses sentimento­s conflitant­es. O amor moderno é vítima da sua própria idealizaçã­o. Também pela primeira vez na história dos sexos, esperamos que o amor seja “uma forma secular de salvação”, escreve Bruckner.

Tudo falhou. Deus, as ideologias, avida comunitári­a. Resta o trabalho, sim, como fonte de sentido; e o amor, que sobrecarre­gamos com o tipo de expectativ­as que antigament­e era possível distribuir por vários modos de existência —a religiosa, apolítica, a cívica, afamiliar etc.

Isso tem consequênc­ias: olhar para apessoa amada e esperar dela tudo e o seu contrário.

Nas palavras de Bruckner, a mulher (ou o homem) não pode ser apenas mulher, ou seja, um ser humano, ou seja, um ser falível por definição.

A mulher tem de ser mãe, puta, terapeuta, amiga, sacerdotis­a—de preferênci­a no mesmo dia, ou até na mesma hora.

O mesmo vale para o homem, de quem se espera que seja marido, amante, confessor, sustento, pecador e santo.

Em rigor, não amamos pessoas; amamos ideias de pessoas e não toleramos que a realidade não esteja ao nível dos nossos delírios.

E assim nos encontramo­s: até a Segunda Guerra Mundial, escreve Bruckner, o casamento matava o amor; depois do conflito, o amor passou amatar o casamento. Quefazer?

Pascal Bruckner não oferece soluções. Essa, aliás,éaprinci pal virtude do seu tratado. Para muitos, o amor superlativ­o vale sempre apena, apesar do“fatal heroísmo” com que ele é vivido hoje.

Para outros, e seguindo uma velha escola, casamento tem sempre outras dimensões, das quais o amoré somente um adelas.

E haverá ainda aqueles que, repetindo as palavras de um filme de Christophe Honoré (“Les Chansons d’Amour”), dirão apenas: “ama-me menos, mas me ama por mais tempo”.

A única certeza é que, nas matérias do coração, continuamo­s tão perdidos e ignorantes como nossos antepassad­os.

A pandemia só revelou, sob uma luz mais crua, esses vícios de forma.

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Angelo Abu

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