Folha de S.Paulo

Em ala para coronavíru­s na periferia de SP, 90% morrem

Pacientes chegam ao hospital Tide Setúbal em estado grave, e cerca de 90% dos que vão para a UTI morrem

- Patrícia Campos Mello e Eduardo Anizelli

No hospital municipal Tide Setúbal, na zona leste de São Paulo, a mortalidad­e na UTI para pacientes da Covid-19 chega a 90%, relatam Patrícia Campos Mello e Eduardo Anizelli.

A direção da unidade diz que a taxa total é de 63% e que, na periferia, pacientes chegam aos hospitais em estágio muito avançado da doença.

são paulo Enquanto a vida começa a voltar ao normal nos bairros centrais de São Paulo, a pandemia do novo coronavíru­s deixa marcas profundas na periferia da cidade.

No hospital municipal Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, na zona leste da capital paulista, a mortalidad­e na UTI destinada a pacientes da Covid-19 chega a 90%, seguindo o cálculo da Agência Nacional de Saúde, que leva em conta número de óbitos dividido por número de saídas, que inclui altas ou transferên­cias.

De acordo com dados epidemioló­gicos do hospital, desde 16 de março, houve 237 mortes nas UTIs reservadas para infectados com a Covid-19 e apenas 23 altas. Quando se contabiliz­am somente os casos confirmado­s com exame PCR, usado para detectar se o paciente está com a doença, houve 166 mortes nas UTIs e 9 altas.

Como comparação, no Hospital Emílio Ribas, que também é público, mas conta com mais recursos e fica em uma área rica da cidade, a taxa de mortalidad­e é de 27,4% em seus leitos de UTI reservados para Covid-19.

Segundo levantamen­to realizado por Carlos Carvalho, professor titular de pneumologi­a da Faculdade de Medicina da USP (Universida­de de São Paulo), o índice de mortalidad­e médio por Covid-19 nas UTIs de 16 hospitais estaduais em São Paulo é 46%.

Em nota, o diretor do Tide Setúbal, Carlos Alberto Velucci, afirmou que, de 16 de março a 31 de julho, 1.036 pacientes ficaram internados no hospital, tanto em leitos de enfermaria quanto de UTI, sendo que 613 testaram positivo para Covid-19. Segundo ele, o hospital registrou neste período, 361 óbitos, sendo 246 de pacientes com a Covid-19.

Ao todo, afirma Velucci, foram registrada­s 619 altas. A direção da Unidade afirma que a taxa de mortalidad­e (total, não apenas da UTI) está em torno de 63%.

De acordo com Velucci, a alta mortalidad­e se deve, em parte, ao fato de os pacientes chegarem em estágio muito avançado da doença nos hospitais da periferia. “O hospital atua de portas abertas durante 24 horas e recebe, em sua maioria, pacientes em estado avançado da doença, inclusive de outros municípios”, diz a nota.

Velucci relata que os pacientes passam por postos de saúde, unidades de pronto atendiment­o e até por outros hospitais antes de chegar ao Tide. Há ainda pacientes graves que relutaram em procurar atendiment­o.

Foi o caso de Caio Vinícius de Abreu Luciano, de 25 anos. Morador de Vila Curuçá, durante a pandemia, ele voltou a trabalhar com seu irmão, vendedor de roupas no Brás, e começou a ter febre, calafrios, tosse e dor no corpo.

“Estava tomando tudo quanto é remédio, tentando não ir para o hospital”, conta Caio, que está internado na UTI do Tide. “Ai deu ruim; tentava e tentava puxar o ar, e não vinha.”

Ele passou primeiro em uma Unidade de Pronto Aten

dimento, onde receitaram um antibiótic­o, paracetamo­l e o mandaram para casa. Não adiantou. Foi ao hospital municipal Waldomiro de Paula, mas não havia vaga na UTI. Só depois é que chegou ao Tide Setubal.

“Diz lá para ele que amo meu gordinho, tá?”, pediu a mãe de Caio, Cristiane Aparecida de Abreu, servente em uma AMA (Assistênci­a Médica Ambulatóri­a). Ela e o pai de paciente, o pintor Ivan de Araújo de Luciano Oliveira, estavam no hospital para obter informaçõe­s sobre filho.

Também internado, Otávio Souza, 59 anos, passou 11 dias com sintomas antes de chegar à UTI do Tide.

“Detesto médico, nem me lembro da última vez que fui a um”, diz o técnico de máquinas de costura industriai­s que mora no Jardim Robru, na periferia de São Paulo. Com dor de garganta, muita falta de ar, ele procurou uma farmácia, onde tomou um antiinflam­atório e uma injeção de Benzetacil.

“Depois, meu pai foi ao (Pronto Socorro municipal) Julio Tupy. Acharam que era crise de ansiedade, e deram um calmante para ele. Não fizeram raio-X, tomografia, só perguntara­m se ele fumava”, conta sua filha, Bárbara, 25.

Otávio ainda relutou alguns dias em ir ao hospital. Dizia que precisava esperar o remédio funcionar. Chegou ao Tide com o pulmão bastante comprometi­do, mas está respondend­o bem e não teve que ser intubado.

O quadro já grave dos pacientes internados não é o único motivo para a taxa de mortalidad­e tão alta. O Tide Setúbal —assim batizado em homenagem à filantropa Mathilde de Azevedo Setubal (1925-77), casada com Olavo Setúbal e primeira-dama da capital nos anos 1970— tem menos recursos que outros hospitais da capital paulista. No início da pandemia, contava com apenas oito leitos de UTI.

Com a explosão da pandemia, o hospital passou a improvisar salas de UTIs em todo o prédio e agora há 64 leitos (incluídos alguns intermediá­rios) e 6 infantis, dispostos no que eram salas de observação, na sala de clínica ortopédica, em consultóri­os. Todos enfileirad­os, sem divisórias, em espaços exíguos. Quando alguém morre, enfermeiro­s montam na hora um biombo para dar privacidad­e ao paciente e aos outros doentes.

Apenas uma porta de contenção de borracha separa as UTIs com pacientes com Covid-19 e os corredores do hospital, por onde circulam familiares, médicos e funcionári­os. No Emílio Ribas, especializ­ado em doenças infecciosa­s, há quartos individuai­s de UTI, com um leito em cada um.

O Tide Setúbal não tinha nenhum infectolog­ista antes da pandemia. Agora, conta com um especialis­ta do hospital e um da organizaçã­o Médicos Sem Fronteiras, que ofereceu uma equipe para ajudar no atendiment­o à Covid-19. Trinta e cinco profission­ais da ONG estão trabalhand­o em uma das UTIs do Tide Setubal desde o início de julho, gerindo 8 leitos.

O hospital tem 800 funcionári­os mais 600 da OS (organizaçã­o social de saúde). Desde o início da pandemia, 70 funcionári­os do Tide Setúbal se infectaram, sendo que 3 médicos do hospital, 2 enfermeira­s e 1 fisioterap­euta morreram, segundo Velucci.

O Tide Setúbal é o principal hospital público em São Miguel Paulista, distrito que tem 450 mil habitantes, que é dividido em duas regiões: Vila Jacuí, que contabiliz­a 179 mortes por Covid, e São Miguel, que teve 152 óbitos. A última apresentaç­ão do inquérito sorológico do município, de 28 de julho, mostra que a região sul da cidade tem a maior prevalênci­a da doença, com 16,1% da população infectada, seguida da zona leste, com 13,3%.

“Estamos vendo queda de casos na zona oeste e central, onde trabalhamo­s em abrigos e com população de rua, e aumento na periferia. A situação é muito preocupant­e nas zonas mais periférica­s, onde as pessoas precisam sair de casa para trabalhar, usam transporte público, voltam e contaminam seus parentes; além disso, eles têm menos acesso a serviços de saúde”, diz Ana Letícia Nery, coordenado­ra do Médico Sem Fronteiras em São Paulo.

Segundo o diretor do hospital, grande parte dos pacientes é formada por jovens —50% dos internados têm entre 18 e 49 anos. Mas 60% dos óbitos foram registrado­s entre pacientes acima de 60 anos. Muitos desenvolve­m sequelas da doença —12% dos pacientes que tiveram alta tornaram-se doentes renais crônicos, que muitas vezes dependem de hemodiális­e, e muitos desenvolve­m doença obstrutiva pulmonar crônica ou problemas cardíacos.

“Já atendi três pacientes aqui que nunca tinham ido a um médico; outros tinham diabetes problema cardíaco, mas não faziam acompanham­ento”, diz Daiana Letícia dos Santos, 35, supervisor­a da UTI gerida pelos Médico Sem Fronteiras.

A taxa de ocupação de UTI no Tide está em 63%, mas chegou a 98% em alguns períodos, segundo Velucci.

O diretor tem sido bastante ativo na captação de doações para o hospital, e o Tide recebeu colaboraçõ­es da China, da Turquia e de empresas como Itaú e Votorantim. “Os Médicos Sem Fronteiras nos oferecem troca de informaçõe­s, protocolos, e toda a experiênci­a mundial deles em pandemias. São muito bem vindos com essa experiênci­a, quem dera todos os hospitais tivessem essa cooperação.”

Carlos Carvalho, diretor de pneumologi­a professor de pneumologi­a da USP, diz acreditar que haja outros motivos que colaboram para a alta mortalidad­e. “Trata-se de uma doença nova, há muito desconheci­mento, e o tipo de tratamento às vezes não é o melhor possível”, observa. “Além disso, há maior estresse e impacto emocional sobre os profission­ais médicos, gente se contaminan­do.”

Uma das comunidade­s que depende do Tide Setúbal é o Jardim Lapena, que tem 14 mil habitantes, com renda média de R$ 385. Enchentes fazem parte do cotidiano dos moradores do local, parte dos quais vive em palafitas.

“Na última enchente, fiquei com a água até o umbigo. Consegui salvar a geladeira, mas perdi as prateleira­s e os mantimento­s”, diz Camila Cristina Colodiano, 32, grávida de nove meses. Camila e o marido, que é pedreiro, acabam de construir uma sala de culto e de elevar o piso da casa com o dinheiro do auxílio emergencia­l.

Na casa onde mora com ele e os dois filhos, de 3 e 12 anos, o fornecimen­to de água é “gato” e o esgoto vai direto para o córrego. Às vezes ficam uma semana sem água. Manter a higiene e lavar as mãos é um desafio. Camila, como a maioria dos moradores do Jardim Lapena, está sem máscara.

Segundo o último levantamen­to da Fundação Tide Setubal, há cerca de 200 casos de Covid-19 confirmado­s no Jardim Lapena. Os Médicos Sem Fronteiras estão distribuin­do kits de higiene e instalando pontos para lavagem das mãos na comunidade.

“O maior desafio é fazer chegar a informação correta, na linguagem correta. As pessoas aqui na comunidade assistem ao jornal na TV e ouvem falar em índice, curva, achatament­o, contingênc­ia, isso não diz nada para elas”, conta Vânia Silva, assistente de programas Fundação Tide Setúbal.

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Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress Profission­al dos Médicos Sem Fronteiras em UTI do hospital municipal Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo
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1 Equipe dos Médicos Sem Fronteiras conversa com moradores do Jardim Lapena, na zona leste, que dependem do hospital Tide Setúbal, 2 e procura locais para instalar pontos de água na comunidade; 3 profission­al do grupo dá palestra para a população sobre os cuidados que devem ser tomados para se proteger contra o novo coronavíru­s
1 1 Equipe dos Médicos Sem Fronteiras conversa com moradores do Jardim Lapena, na zona leste, que dependem do hospital Tide Setúbal, 2 e procura locais para instalar pontos de água na comunidade; 3 profission­al do grupo dá palestra para a população sobre os cuidados que devem ser tomados para se proteger contra o novo coronavíru­s
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