Folha de S.Paulo

Estupro jurisdicio­nal

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

são paulo É preocupant­e a pretensão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de fazer com que suas decisões no chamado inquérito das fake news valham não apenas para a operação brasileira de empresas como Facebook e Twitter mas também para a internacio­nal. Aqui, o ministro extrapola sua jurisdição e o faz com um viés autoritári­o.

É fácil ver que o caminho escolhido por Moraes não passa no teste kantiano da universali­zação da regra. Em vários países da África e do Oriente Médio, a homossexua­lidade é crime. Se juízes dessas nações podem estender sua jurisdição para aplicativo­s sediados no exterior, então teríamos de aceitar como legítima a ordem de um magistrado da Arábia Saudita para derrubar sites americanos de pornografi­a e de encontros. A moral prevalecen­te na internet seria a da mais retrógrada das nações.

Obviamente, esse raciocínio não vale apenas para questões relativas a sexo, aplicando-se também a opiniões políticas, estudos científico­s, peças artísticas etc. Se é o Taleban que está no poder no Afeganistã­o, então até o site do Louvre poderia ser censurado, já que traz imagens de estátuas que, na interpreta­ção das autoridade­s judiciais daquele país, seriam ilegais.

Não há dúvida de que certas fake news e radicalism­os, incluindo falas de bolsonaris­tas, são socialment­e nocivos. Por vezes, constituem crimes, que podem e devem ser combatidos. Se a ofensa for séria o suficiente, será um ilícito em qualquer nação, abrindo caminho para a cooperação judicial entre países.

Caso contrário, acabarão prevalecen­do as normas das nações mais liberais, pois é nelas que as empresas globais de internet tendem a estabelece­r-se. E esse é um dos milagres da rede. Ela cria uma espécie de concorrênc­ia entre legislaçõe­s nacionais capaz de gerar um círculo virtuoso de promoção da liberdade e do cosmopolit­ismo. A pretensão de Moraes de enquadrar o Facebook é a negação disso.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil