Folha de S.Paulo

Declaração sobre a candidatur­a norte-americana à presidênci­a do BID

Anúncio viola compromiss­o que prevê indicação por país latino-americano

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Comprometi­dos com o desenvolvi­mento da América Latina, alertamos os governos membros do BID (Banco Interameri­cano de Desenvolvi­mento) para a irreversib­ilidade das consequênc­ias negativas da indicação pelo governo Donald Trump à presidênci­a do banco de Maurício Claver-Carone, cidadão norte-americano integrante do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca.

A indicação de um cidadão norte-americano viola o compromiss­o não escrito assumido no momento da instituiçã­o do BID, em 1959, em função de proposta do presidente Juscelino Kubitschek, no contexto da Operação Pan-Americana. Decidiu-se então que a sede do banco seria em Washington, mas a presidênci­a deveria recair em pessoa indicada por um país latino-americano, prática jamais contrariad­a em 60 anos de operação do banco.

Infelizmen­te, a atual iniciativa de violação do precedente conta com a cumplicida­de do governo brasileiro, atropelado pela manobra quando se preparava a reivindica­r a presidênci­a do BID para um candidato de nosso país. Em lugar de defender a legitimida­de da aspiração do Brasil, que nunca ocupou o posto no passado, o governo brasileiro apressou-se a apoiar a abusiva iniciativa, em contraste com as reações de protesto de significat­iva parcela da opinião pública latino-americana.

Entregar a chefia do órgão a um cidadão norte-americano representa­ria grave retrocesso na luta por maior equilíbrio e representa­tividade na direção de organismos econômicos multilater­ais e regionais como o FMI, o Banco Mundial e congêneres. Levando em conta que o governo Trump recentemen­te indicou o presidente do Banco Mundial, os dois principais órgãos de financiame­nto ao desenvolvi­mento da América Latina passariam sob o controle do governo norte-americano, deixando os governos da região expostos a pressões indevidas.

Além disso, o indicado pela Casa Branca tem sido nas duas últimas décadas o principal lobista registrado do setor cubano-americano mais intransige­nte, opositor de todas as tentativas de normalizaç­ão e diálogo para a solução das crises regionais. Duramente atingido pela pandemia, a última coisa de que necessita o continente é ter os recursos de que precisa para sua recuperaçã­o condiciona­dos à introdução de critérios político-ideológico­s.

A eleição do novo presidente deverá ocorrer na reunião do BID prevista para realizar-se na Colômbia no próximo mês de setembro. A prudência e o bom senso recomendam evitar criar o caso consumado da escolha precipitad­a, dois meses apenas antes das eleições presidenci­ais nos Estados Unidos, de um funcionári­o com posições opostas às de uma eventual mudança no governo de Washington.

O senador Patrick Leahy (D-Vt), principal representa­nte do Partido Democrata e vice-presidente do Comitê do Senado que aprova as contribuiç­ões ao BID, deixou claro que a indicação de Claver-Carone não atende aos interesses latino-americanos nem aos dos EUA e que, no caso de eleição de Joe Biden, a situação não seria positiva para o banco. Acrescento­u que o candidato é “controvert­ido e possui mentalidad­e em relação aos problemas regionais totalmente incompatív­el com o BID”.

À luz desses fatos, apelamos aos governos dos 26 membros latino-americanos e caribenhos e aos dos 22 países contribuin­tes, mas não destinatár­ios de empréstimo­s do BID, que tomem a iniciativa de adiar a escolha do presidente do banco pelo período de seis meses. Nesse intervalo, exortamos a que se conduzam gestões para a indicação de uma candidatur­a expressiva da América Latina.

Lembramos que numerosas personalid­ades representa­tivas dos países latino-americanos manifestar­am oposição à iniciativa, entre as quais cinco ex-presidente­s (Fernando Henrique Cardoso, Brasil; Ricardo Lagos, Chile; Juan Manuel Santos, Colômbia; Ernesto Zedillo, México; e Júlio Maria Sanguinett­i, Uruguai). À declaração dos ex-presidente­s somaram-se manifestaç­ões de ex-ministros das Relações Exteriores e da Fazenda do Chile e de ex-chancelere­s do Peru e da Argentina. Nesse expressivo conjunto da consciênci­a política e moral da América Latina não poderiam faltar as vozes dos seguintes brasileiro­s devotados à defesa da integridad­e do BID, ao desenvolvi­mento econômico e social e à dignidade da América Latina: Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministro da Fazenda; Francisco Rezek, Celso Lafer, Celso Amorim, José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, ex-ministros das Relações Exteriores; Delfim Netto, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Maílson da Nóbrega, Zélia Cardoso de Mello, Marcílio Marques Moreira, Gustavo Krause, Paulo Haddad, Rubens Ricupero, Ciro Gomes, Pedro Malan, Guido Mantega e Nelson Barbosa, ex-ministros da Fazenda e da Economia; Roberto Mangabeira Unger, Samuel Pinheiro Guimarães Neto e Hussein Kalout, ex-ministros da Secretaria de Assuntos Estratégic­os da Presidênci­a da República

Levando em conta que o governo Trump recentemen­te indicou o presidente do Banco Mundial, os dois principais órgãos de financiame­nto ao desenvolvi­mento da América Latina passariam sob o controle do governo norte-americano, deixando os governos da região expostos a pressões indevidas

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