Folha de S.Paulo

O problema das redes sociais

Indivíduos que se organizam para promover discurso de ódio ameaçam a democracia

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

O que há em comum entre as milícias digitais investigad­as no inquérito das fake news e a cultura do cancelamen­to que ameaça empregos e reputações por pequenas transgress­ões do discurso? Ambos são fenômenos das redes sociais, e isso não é coincidênc­ia.

Tudo nas redes convida ao pensamento de rebanho, à polarizaçã­o e à perseguiçã­o de “infratores”. E não por culpa de algum algoritmo insidioso criado pela ganância empresaria­l que poderia ser facilmente mudado.

O buraco é mais embaixo: são tendências da própria natureza humana que encontram nas redes espaço para se desenvolve­r.

Infelizmen­te, ao contrário do que os otimistas acreditava­m, a internet não produziu uma maravilhos­a ágora universal de debate racional que nos leva à verdade.

E isso porque a mente humana não busca a verdade; ou não apenas a verdade.

Ela trabalha incansavel­mente para confirmar aquilo em que acreditamo­s e negar o que lhe contraria. Se nos oferecem uma abundância de dados e fatos —é o que a internet fez— isso não nos leva a atualizar nossas crenças e corrigir erros. Essa abundância permite que, com muita facilidade, selecionem­os os pedaços de informação mais convenient­es para reforçar nossas crenças prévias.

As redes sociais intensific­am essa tendência ao colocar a ambição individual por fama a serviço dessa tendência. Afinal, as pessoas irão curtir e compartilh­ar aquilo que reforce suas crenças pré-existentes.

Se faço um texto ponderado, apontando lados bons e ruins de uma posição, isso gera incômodo e ninguém compartilh­a.

Agora, se jogo desavergon­hadamente para a plateia, reafirmand­o suas crenças e preconceit­os, o sucesso vem muito mais fácil.

Entre direitista­s, ganha mais quem reafirmar posições de direita em estado puro, sem matizes. Idem para a esquerda. E assim todos caminham para versões mais radicais.

Essa regra vale também para outro passatempo favorito da humanidade: atacar inimigos. A identidade de qualquer grupo é em boa medida definida pela oposição entre quem está dentro e quem está fora dele. Quem ataca os inimigos do grupo adquire reputação. Quem ousar ver pontos positivos neles colherá desprezo. Assim, o ódio tende a crescer.

Outro ponto: não há qualquer limitação no tipo de conteúdo que pode circular.

Antes das redes sociais, a maior parte da informação que chegava até nós passava por algum crivo institucio­nal. Hoje não existe mais controle.

Uma informação falsa inventada com a pior das intenções circula livremente por dias até que algum órgão profission­al identifiqu­e e forneça uma correção. E nesse momento novas mentiras já foram criadas.

Para completar, a interação a distância dá mais espaço à fantasia negativa sobre o outro: é muito fácil projetar más intenções em alguém com quem me relaciono apenas por meio de textos.

Da mesma maneira, o custo de ser desagradáv­el, agressivo e simplesmen­te mal-educado é muito menor nas redes sociais. Permito-me ir até uma pessoa que não conheço para ofendê-la, algo que jamais faria se a encontrass­e na rua.

Indivíduos e grupos que, consciente­s dessa tendência à radicaliza­ção nas redes, se organizam para criar e promover conteúdo difamatóri­o e discurso de ódio ameaçam a democracia.

Mesmo que consigamos debelar essas condutas criminosas, contudo, a dinâmica perversa das redes ainda trará desafios para nossa ordem política. A rede social não é ágora, e sim arena.

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