Folha de S.Paulo

Argentinos reagem a liberação de repressor durante pandemia

Presos são grupo de risco; entidades de direitos humanos se opõem devido à gravidade dos crimes na ditadura

- Sylvia Colombo

buenos aires Desde o início da pandemia de coronavíru­s, a sociedade argentina tem discutido o que fazer com o risco de infecção dentro das prisões, com um agravante político: os centros de detenção abrigam também 221 repressore­s condenados por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar (1976-1983).

Depois de um motim da penitenciá­ria de Devoto, em Buenos Aires, em abril, quando os detentos pediram para sair por não haver condições de respeitar o isolamento social devido à superlotaç­ão, o governo do presidente Alberto Fernández pediu à Justiça uma solução. Naquele momento, já havia contaminad­os entre os 52 mil internos que ocupavam um espaço com capacidade para 24 mil pessoas.

A decisão da Justiça foi entregar aos diretores das penitenciá­rias a responsabi­lidade de escolher quem poderia ser liberado durante a pandemia —preferenci­almente autores de crimes leves ou quem ainda aguardava a condenação.

A orientação geral era que não saíssem assassinos, estuprador­es nem repressore­s da ditadura, mas era possível levar em conta a idade e o quadro de saúde dos detidos.

“Os critérios não foram respeitado­s, as liberações foram mal feitas e, ao final, respondera­m a critérios políticos”, explica a advogada Florencia Arietto. Pela lei, os maiores de 70 anos têm o direito de pedir para cumprir o resto da pena em casa —é o caso dos membros do regime militar.

No total, há 862 pessoas condenadas por crimes contra a humanidade durante o governo autoritári­o. Durante a gestão de Maurício Macri (20152019), 57% desses condenados deixaram a prisão e estão cumprindo a pena em casa.

Os que ainda estão na cadeia agora pedem para sair por fazerem parte do grupo de risco da Covid-19. Mas entidades de direitos humanos são contra —devido à gravidade dos crimes cometidos. E poucos foram autorizado­s a sair.

Para o advogado Emanuel Lovelli, que trabalha junto à associação Avós da Praça de Maio, o Estado tem que ser responsáve­l por garantir as condições de isolamento nas penitenciá­rias e pelo tratamento, em hospitais, dos infectados.

“O fato de a penitenciá­ria estar superlotad­a é um problema do Estado, não se resolve liberando o repressor.”

A maior parte dos ex-militares está nos presídios de Ezeiza, Marcos Paz e Campo de Mayo. Neste último, há registro de 28 presos e 7 carcereiro­s contaminad­os e dois repressore­s mortos: Juan Domingo Salerno, condenado por tortura, e Edberto González de la Vega, condenado pelo assassinat­o de militantes de esquerda.

Entre os infectados estão Luis Muiña, condenado por sequestrar cinco trabalhado­res de um hospital de Buenos Aires durante o regime militar, e Gonzalo “Chispa” Sánchez, envolvido na morte do escritor Rodolfo Walsh e nos voos da morte. Ele foi recentemen­te extraditad­o do Brasil.

Um dos repressore­s presos no Campo de Mayo, Carlos Capdevilla, 74, que participou do esquema de roubo de bebês e da entrega das crianças a famílias de militares, obteve a liberação devido à idade, mas a entidade de direitos humanos H.I.J.O.S. pressiona para que o benefício seja revogado.

Desde o início da crise, 4.500 detentos foram liberados por conta do coronavíru­s. O ministro da Segurança da província de Buenos Aires, Sergio Berni, atribui a eles a maioria dos casos registrado­s de roubo e assalto após a libertação.

“O que se espera dessas pessoas? Foram deixadas na rua com uma mala e lhes disseram: ‘Voltem quando a pandemia acabar’”, disse a jornalista­s estrangeir­os na quintafeir­a (30). “E o que acham que estão fazendo agora, no meio da pandemia, para se manter? Claro que estão roubando.”

A revolta com as liberações causou protestos e panelaços. Uma pesquisa publicada pelo jornal Clarín, ainda no começo de maio, apontou que 81,8% dos entrevista­dos eram contrários à saída dos detentos.

O nível mais elevado dessa tensão ocorreu na semana passada, na província de Buenos Aires, quando um condenado que havia sido libertado devido ao coronavíru­s entrou na casa de um aposentado para roubá-lo. O aposentado buscou uma arma, perseguiu o assaltante na rua e o matou.

Enquanto parte dos argentinos defende o aposentado, consideran­do que agiu em legítima defesa, a Justiça o processou por assassinat­o. Para a advogada Florencia Arietto, as liberações dos presos durante a pandemia deveriam ter sido feitas apenas em último caso. “O Estado se assustou com os motins nas prisões, mas se mostrou ineficient­e para contê-los. O resultado são essas liberações que estão assustando a sociedade.” declaração. “O caminho para levá-lo a julgamento é muito difícil aqui na Alemanha, mas não impossível”, diz o advogado Andreas Schüller, representa­nte da família de Omar Marocchi, assassinad­o por uma operação em Mar del Plata, em 1976, que teria sido ordenada por Kyburg, então subcomanda­nte da Marinha.

Segundo ele, a extradição é complicada por Kyburg ser cidadão alemão. A irmã de Omar, Anahí, foi à Alemanha pedir que o julgamento ocorra.

A situação é incerta porque as legislaçõe­s dos dois países são diferentes com relação aos crimes de lesa humanidade e aos abusos de direitos humanos. Na Argentina, se uma pessoa integra um grupo de repressore­s que cometeu um delito do tipo, basta para que seja acusada —na Alemanha, não necessaria­mente.

Além disso, os crimes de sequestro e tortura estão prescritos aos olhos da legislação alemã. O único crime que não prescreve é o de assassinat­o.

A dificuldad­e aumenta porque se trata de um assassinat­o ocorrido num centro clandestin­o de detenção em Mar del Plata, há mais de 40 anos.

Quando Marocchi foi morto, sua parceira, Suzana Valor, grávida de três meses, desaparece­u. Além de justiça pela morte de Omar, a família espera ter alguma pista do que pode ter ocorrido com o bebê.

Em 2012, a Justiça argentina emitiu mandados de prisão a vários comandante­s da Marinha acusados de crimes contra a humanidade. Ao saber que era procurado, Kyburg viajou para Berlim. A Argentina, ao descobrir, em 2015, que o repressor estava na Europa, emitiu um pedido de busca e prisão à Interpol (polícia internacio­nal) e um pedido de extradição para o governo alemão.

Como o ex-militar é cidadão alemão, nada foi feito, e a estratégia da defesa é levar adiante o julgamento em Berlim.

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