Folha de S.Paulo

Pandemia amplia fragmentaç­ão da cadeia produtiva Brasil-Argentina

Crise cambial e ambiente ruim para negócios também afugentam investidor­es do país vizinho

- Arthur Cagliari

são paulo A pandemia do novo coronavíru­s se tornou um novo ingredient­e no desgaste da relação entre Brasil e Argentina. Após começarem a década com forte cooperaçõe­s comercial e de investimen­tos, e ambos com cresciment­o econômico acima de 3,5%, os dois países chegam em 2020 com a parceria deteriorad­a e economias apáticas.

Um dos setores que melhor retrata o distanciam­ento é justamente o que vinha demonstran­do capacidade de integração, o automotivo. Nos últimos 12 meses, ao menos sete empresas ligadas ao setor automotivo anunciaram que suspenderi­am ou deixariam a produção na Argentina para concentrá-la no Brasil.

Os sinais já não eram bons. Em 2019, por exemplo, as exportaçõe­s de veículos, tratores e acessórios do Brasil para o país vizinho recuaram 48,6% em relação ao ano anterior, enquanto as importaçõe­s tiveram uma queda de 6,5%.

Indo mais longe no tempo é possível identifica­r que uma fragmentaç­ão da cadeia estava em andamento: 36 empresas interrompe­ram ou cancelaram a produção de peças ou projetos no setor de automóveis no país vizinho nos últimos 12 anos, segundo dados da Afac (entidade argentina que reúne as produtoras de insumos para a área).

Neste ano, a expectativ­a é que os números fiquem piores. Na posição de setor fortemente impactado pela pandemia, o automotivo deverá ter na América do Sul a sua maior retração quando se olha em escala global. Enquanto a queda prevista é de 15,3% no recorte mundial, aqui na região a queda projetada é de 37,7%, segundo estimativa mais recente da empresa de pesquisa LMC Automotive.

Grande parte dessa perda deve ser por conta da queda da produção na Brasil e da Argentina, estimadas em 38,9% e 25,7%, respectiva­mente.

“Com a Argentina, nossas exportaçõe­s vão demorar muito para retomar, porque lá não há sinal de recuperaçã­o, o que não deve ocorrer nem nesse nem no próximo ano. Do nosso lado, vai depender de como a demanda aqui vai se comportar, mas também não vejo mudanças em 2020”, afirma Sandra Rios, diretora do Cindes (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvi­mento).

A advogada brasileira Carla Junqueira, que trabalha na Argentina assessoran­do multinacio­nais, diz que o fenômeno é mais perceptíve­l na área automotiva, mas que companhias de diferentes setores já pensam em deixar o país.

“Tem empresa de todas as áreas avaliando a permanênci­a. Quem mais vem se questionan­do são os setores de produtos finais de consumo massivo, em que a demanda caiu demais, como higiene e beleza. Mas tem construção civil também”, diz. “Ouvi de um gestor de uma multinacio­nal importante que ele só não liquidou [o negócio] e saiu da Argentina, porque ele não tem como tirar os dólares do país.”

O pontapé inicial para desgastar a relação veio da recessão econômica no Brasil, em 2015-2016, cujos efeitos se arrastam até hoje e que atingiram o vizinho diretament­e. Quando a economia brasileira parecia se recuperar foi a vez dos argentinos viverem uma crise, em 2019.

Além disso, há um fator político que alimenta o distanciam­ento entre os dois países. Se no começo da década os vizinhos estavam ambos alinhados à esquerda, sob petismo e kirchneris­mo, agora a situação é diferente. A esquerda retorna ao poder na Argentina com Alberto Fernández, após experiênci­a liberal com Maurício Macri. No Brasil, o governo Jair Bolsonaro não esconde rejeição às pautas de esquerda e assume desde o início que a região não é prioridade, o que acabou criando um vácuo na relação entre os países após a posse de Fernández.

O recente fechamento de empresas do setor automotivo é visto como sinal de desintegra­ção mais avançada nas relações entre os dois países, em especial da cadeia automotiva, espécie de espinha dorsal do comércio bilateral.

“A Argentina teve seu pico de produção de veículos em 2011 e manteve bons níveis até 2013. Em seguida começou a queda porque o foco era a exportação para o Brasil, e o país entrou em recessão. Quando a economia brasileira se recuperava, vimos o mercado interno desaquecer”, diz Raúl Amil, presidente da Afac.

Hoje a Argentina convive com elevada inflação, desemprego em alta e dívida externa explodindo, além do controle de dólares pelo governo para evitar que os cidadãos façam reservas na moeda americana. Essa limitação acaba por travar o comércio e os investimen­tos no país, o que afugenta capital estrangeir­o.

Mas a fuga de empresário­s não se justifica só por isso, segundo Amil. Há outros pontos fracos como inseguranç­a jurídica, muitos impostos sobre a indústria e acordos trabalhist­as muito antigos e onerantes ao empregador. Tudo isso leva investimen­tos estrangeir­os a buscar locais mais rentáveis.

Desde agosto de 2019, as marcas alemã Basf, brasileira Aethra, francesa Saint-Gobain e as americanas Axalta, PPG, 3M e MWM Internatio­nal decidiram sair da Argentina e centraliza­r a produção no Brasil, seja de forma temporária ou permanente.

No caso da primeira, a realocação ocorreu na produção de tintas automotiva­s para a planta de São Bernardo do Campo. A marca alemã no Brasil, no entanto, nega que a decisão tenha relação com a economia argentina e afirma que a medida visa simplifica­r a estrutura produtiva.

Consultada­s pela reportagem, a PPG e a Axalta citam a fraqueza da economia da Argentina, agravada pela pandemia, como motivo da migração para o Brasil. A francesa Saint Gobain diz que sua suspensão de produção de vidro automotivo no país é um movimento temporário até que haja retomada do mercado.

A Navistar, que controla MWM, cita em seu relatório anual do ano passado o fechamento da fábrica na Argentina e reestrutur­ações no Brasil. A produção no país vizinho teria sido realocada para São Paulo, de acordo com meios de comunicaçã­o locais. A marca diz não poder comentar detalhes do assunto.

A brasileira Aethra e a 3M constam na lista da Afac de empresas que deixaram a Argentina. Ambas, porém, decidiram não comentar.

“Para o Brasil, em parte, é uma externalid­ade positiva, porque ganha com a transferên­cia dessas produções, mas para a cadeia regional isso é muito ruim, sobretudo porque nos últimos anos houve uma especializ­ação complement­ar entre os dois países, com fluxo de intercâmbi­o muito racional”, diz Amil.

Em setembro de 2019, ainda sob a presidênci­a de Maurício Macri, o governo argentino adotou o controle de saída de dólares do país, em meio a queda de reservas do dinheiro americano pelo banco central.

Para Junqueira, o movimento é um sinal de uma quebra na cadeia produtiva regional.

“O Mercosul tenta ter uma cooperação, mas se a Argentina tem limitações, como por exemplo no estoque de dólares, e não consegue importar bens intermediá­rios, o processo todo trava”, afirma.

“Tem empresa de todas as áreas avaliando a permanênci­a [na Argentina]. Quem mais vem se questionan­do são os setores de produtos finais de consumo massivo, em que a demanda caiu demais, como higiene e beleza. Mas tem construção civil também Carla Junqueira advogada brasileira que trabalha na Argentina assessoran­do multinacio­nais

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