Folha de S.Paulo

Crise de gêneros ou do mercado de trabalho?

É retrocesso voltar a impor às mulheres a escolha binária entre carreiras e famílias

- Cecilia Machado Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

Os impactos econômicos das medidas de isolamento social afetaram desproporc­ionalmente os trabalhado­res mais vulnerávei­s. Não apenas aqueles com menores salários e para os quais o trabalho remoto não é opção, mas também aqueles cujo arranjo familiar —a presença de crianças— dificulta o exercício de suas funções quando as escolas estão fechadas.

Para as mulheres, os impactos foram ainda mais substancia­is. Já se sabe, por exemplo, que a queda no emprego foi maior entre elas. E que essas variações de emprego ocorrem inclusive dentro de um mesmo setor, contestand­o a interpreta­ção

de que as mulheres se concentram nas atividades

mais afetadas pela crise.

No passado, as mulheres encontrava­m-se segregadas em ocupações específica­s e estáveis, como em atividades de ensino e cuidado (professora­s, enfermeira­s, assistente­s sociais), que as deixavam menos suscetívei­s aos ciclos econômicos.

De lá para cá, muitas coisas mudaram, e as reduções de várias —mas não todas— desigualda­des de gênero no mercado de trabalho se tornaram evidentes. Houve, por exemplo, convergênc­ia nas escolhas profission­ais de homens e mulheres, devido a uma enorme conjunção de fatores, incluído os econômicos (demanda por trabalho qualificad­o), os sociais (normas) e os progressos médicos e tecnológic­os (saúde materna).

De acordo com a historiado­ra econômica Claudia Goldin, a conquista, feita ao longo de mais de um século, foi expressiva: hoje, mulheres podem ter tanto uma carreira quanto uma família, sem que uma prejudique a outra.

Vale lembrar que para a primeira geração de mulheres com ensino superior nos Estados Unidos (nascidas entre 1878 e 1897) havia apenas uma escolha possível: carreira ou família. E que a maioria delas optou justamente por não ter filhos. As primeiras mulheres que de fato conseguira­m equilibrar as aspirações de uma família com uma carreira propriamen­te dita —aquela que possui permanênci­a temporal, não-intermiten­te— o fizeram adiando a decisão dos filhos para mais tarde.

Flexibilid­ade que foi permitida pela disseminaç­ão e uso de anticoncep­cionais orais na década de 70, e ampliada pelo desenvolvi­mento de técnicas de reprodução assistida mais recentemen­te.

Mas a crise de agora deixou expostas outras tantas desigualda­des ainda existentes, muitas originária­s do próprio funcioname­nto do mercado de trabalho.

Com o fechamento das escolas, e o aumento da quantidade de horas dedicadas às tarefas domésticas para aqueles com filhos, tornou-se inviável o exercício pleno de jornadas longas, inflexívei­s e imprevisív­eis —a nova norma em muitas carreiras profission­ais.

O fenômeno é decorrente do expressivo aumento dos retornos a esses atributos no mercado de trabalho, que remunera desproporc­ionalmente mais por unidade de hora em um contrato de trabalho no qual muitas horas são oferecidas, ou quanto o trabalhado­r está sempre disponível para as tarefas que são menos previsívei­s. Ora, se o fechamento das

escolas impõe mais horas dedicadas às tarefas domésticas para trabalhado­res com filhos, implicando em redução das horas trabalhada­s como um todo na família, nada mais razoável que a redução de horas se dê para apenas um de seus membros.

E como os homens ainda ganham mais que as mulheres, não é difícil argumentar que a redução de horas de trabalho (ou emprego) se dê justamente entre as mulheres, ainda que não exista nenhuma vantagem comparativ­a para elas no atendiment­o às demandas domésticas.

É notório que o fechamento das escolas compromete o aprendizad­o das crianças e prejudica a retomada das atividades econômicas para trabalhado­res com filhos. De forma igualmente importante, também propaga e reforça as ainda existentes desigualda­des do mercado de trabalho em ambiente doméstico.

É um enorme retrocesso voltar a impor às mulheres a escolha binária entre carreiras e famílias: além do desperdíci­o de capital humano produtivo, compromete mais de cem anos de conquistas a favor da igualdade entre os gêneros no mercado de trabalho.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil