Rio de Janeiro tem o menor número de armas apreendidas em 21 anos
Queda começou antes da pandemia e de decisão do STF que limita operações em favelas do estado
rio de janeiro As polícias do Rio de Janeiro registraram nos seis primeiros meses deste ano o menor número de armas de fogo apreendidas de seu histórico. Foram 3.360 unidades recolhidas de, a marca mais baixa para um primeiro semestre desde 2000, quando essa estatística se iniciou.
A média dos últimos seis anos foi de 4.368 armamentos retirados das ruas no mesmo período, 25% a mais. A queda atinge quase todos os tipos de arma, incluindo as mais pesadas, como os fuzis.
As munições acompanham a tendência. A quantidade de cartuchos apreendidos no primeiro semestre também foi a menor desde que o dado começou a ser coletado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2014.
Nesse caso a redução é ainda maior: foram 49 mil munições apreendidas, diante de média de 88 mil nos seis anos anteriores (diferença de 44%).
Procuradas para comentar os dados, as polícias não responderam à reportagem.
A queda nas apreensões coincide com o isolamento social durante a pandemia do novo coronavírus e inclui junho, quando o ministro Edson Fachin, do STF, limitou operações em favelas do estado durante a crise sanitária.
“A pandemia pode ter impactado fortemente pelo modo como são feitas as apreensões no Brasil. A polícia normalmente recolhe as armas depois que elas estão em uso, e não antes. Ou seja, quando ocorre um crime, em abordagens ou em operações”, diz Bruno Langeani, coordenador do Instituto Sou da Paz, que ajudou a compilar os dados.
Nessa lógica, como havia menos gente nas ruas, aconteceram menos crimes e portanto houve menos apreensões —roubos de veículos e de cargas, por exemplo, que normalmente incluem uso de armamento, caíram 36% em relação ao ano passado.
Provavelmente também havia menos policiais atuando nessas atividades, tanto por terem sido deslocados para outras funções quanto por terem se contaminado pelo vírus. “Como a apreensão é feita de certo modo por acaso, exige muito recurso humano”, acrescenta Langeani.
A pandemia e a decisão do STF podem ajudar a explicar a baixa produção das polícias entre março e junho, mas não são suficientes para esclarecer a queda expressiva que já existia em janeiro e fevereiro.
“A diminuição já vinha acontecendo mesmo quando havia número alto de operações. É mais um elemento que mostra que as operações não são uma boa estratégia para resolver a segurança pública”, avalia Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé.
Silvia Ramos, pesquisadora da Universidade Cândido Mendes e coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança, concorda que a baixa efetividade atual é reflexo de um modelo ineficiente.
“Um documento do próprio governo afirma que traficantes e milícias continuam articulados mesmo depois de tantos anos fazendo operações. Na gestão Witzel isso se potencializou: cada batalhão faz suas operações e não tem uma coordenação pensando que o que alimenta o crime é a venda de armas e munições, sem qualquer inibição”, completa.
Também é apontada como hipótese para a queda nas apreensões uma possível redução da produtividade da Desarme, a delegacia especializada em armas, munições e explosivos do Rio, depois da troca de gestão. Em 2019 Witzel passou a chefia da unidade do delegado Fabricio Oliveira para Marcus Vinicius Amim.
É consenso entre pesquisadores, porém, que as baixas apreensões não se devem a uma redução da circulação de armamentos. O documento citado por Silvia Ramos, enviado pela Polícia Civil ao STF para tentar reverter a restrição às operações, estima que 56.520 traficantes ou milicianos portem fuzis ou pistolas no estado hoje.
Dados nacionais também mostram que o registro de novas armas pela Polícia Federal e a compra de munições controladas pelo Exército explodiram neste ano, após flexibilizações nas normas pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) —grande parte dos artefatos usados pelo crime são desviados de fontes legais.
A lógica das operações, para os analistas, faz com que investigações sobre a real origem de armas e cartuchos fiquem em segundo plano.
“As polícias em geral não vão atrás da origem da arma, o trabalho para ali no roubo ou registro de porte. Dificilmente um delegado vai pedir rastreamento”, diz Langeani.
Nesta terça (4), a medida recebe os votos dos demais ministros, que decidirão sobre sua manutenção ou retirada.
“Sem operações em Manguinhos, é como se houvesse uma mágica que deixasse até o ar mais leve”, diz Eliene Maria Vieira, integrante do movimento Mães de Manguinhos, que reúne familiares de crianças e jovens vítimas da violência policial. “Quando tem operação, o pavor fica no ar”, explica. “Somos contrários às operações não porque defendemos o crime, mas porque defendemos a vida.”
A medida cautelar fez cair o número de operações em favelas do Rio em 78% de 5 de junho a 5 de julho, e no período o número de mortos nessas incursões recuou 72,5%, segundo estudo do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense. O estudo também aponta redução de 47,7% nos crimes contra a vida e de 39% nos crimes contra o patrimônio na região metropolitana do Rio de Janeiro no mesmo período, quando vigorou a quarentena.
Segundo projeções do estudo a partir das tendências no número de mortes provocadas pelas polícias em operações, e da redução observada, a suspensão promovida pela liminar seria capaz de poupar 360 vidas em um ano.
A judicialização das operações policiais fluminenses ocorre no âmbito da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635.
Apelidada de ADPF das Favelas, a ação reúne coletivos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil que atuam nesses territórios e que, pela primeira vez, poderão se manifestar em peso diretamente aos ministros do Supremo. Isso porque elas participarão dos julgamentos da ação como amicus curiae (amigos da corte), um dispositivo que permite a manifestação de especialistas, sociedade civil e grupos durante a apreciação da causa.
“A gente quer mostrar ao ministro a nossa realidade porque isso chega pra eles diferente”, avalia Eliene, do Mães de Manguinhos, que é amicus curiae da ADPF 635 ao lado de grupos como Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, além de organizações como Movimento Negro Unificado, Educafro, Redes da Maré e Conectas Direitos Humanos, entre outros. “Temos a esperança de que olhem para nós como sujeitos de direitos, não como inimigos. Pedimos que vidas de jovens sejam preservadas, e queremos mostrar que isso só acontece dentro da favela.”.
Para o advogado Gabriel Sampaio, coordenador de litígio da Conectas Direitos Humanos, a escuta desses grupos no âmbito do julgamento da ADPF 635 é um marco. No Brasil, 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas, sendo 1,3 milhão no Rio de Janeiro (22% da população local).
“Com essa participação no julgamento, o STF pode tomar uma decisão que, além da análise constitucional, considera os atos normativos e a política de segurança pública do Rio à luz de suas consequências para quem vive em favelas.”
Entre os pedidos da ADPF estão a formulação de um plano de redução da letalidade policial e de violações de direitos humanos, a vedação ao uso de helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror, a divulgação dos protocolos de atuação policial, a instalação de câmeras e GPS nas viaturas, a presença de ambulâncias com equipes médicas durante as operações e a redução de operações no entorno de hospitais e escolas a casos excepcionais.
Restringir as operações a espaços e horários que não coloquem em risco os estudantes das comunidades é uma das muitas batalhas da família de Uidson Alves Ferreira, 35.
Ele é irmão de Maria Eduarda Alves da Conceição, morta em 2017, aos 13 anos, quando foi atingida por tiros de fuzil em aula de educação física, na Pavuna, zona norte do Rio.
A perícia comprovou que os tiros que atingiram a jovem partiram da arma do cabo Fábio de Barros Dias, quando ocorria operação policial nas redondezas. “Queremos ver o policial preso porque está provado que os tiros partiram dele. E sua prisão pode mostrar que o Estado está dizendo que quem fizer algo errado, vai pagar por isso”, diz.
Para ele, a ADPF das favelas é motivo de esperança. “Quero ver as favelas unidas em prol do povo do Brasil. Essas ações policiais não acontecem em Ipanema, Copacabana ou na Barra da Tijuca.”