Folha de S.Paulo

Em vídeo, ‘Morte e Vida Severina’ reflete sobre tragédias do passado e do presente

- Naief Haddad

são paulo Há seis décadas e meia, João Cabral de Melo Neto publicou um auto de Natal sobre um homem, Severino da Maria do Zacarias, que vai do sertão de Pernambuco ao Recife. Por todo o caminho, paisagens de morte o acompanham.

“É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo.

É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca.”

Publicado em 1955, o poema “Morte e Vida Severina” ganha novas leituras neste 2020, ano da pandemia.

Os versos que partem da dimensão das covas para comentar a fragilidad­e humana e a desigualda­de social poderiam ter sido escritos nos dias de hoje, sob a peste prestes a matar 100 mil brasileiro­s.

“Infelizmen­te, a obra é muito atual. A vida severina continua”, diz Eugênia Thereza de Andrade, criadora e diretora geral do projeto 7 Leituras, 7 Autores, 7 Diretores.

No seu 14º ano, esse ciclo promovido pelo Sesc apresenta pela primeira vez o poema de João Cabral. Ainda há outro ineditismo, o formato. Como o teatro —ao menos da forma como o conhecemos— ainda é inviável no país, 7 Leituras ganha uma versão online.

Depois de uma introdução de Eugênia, quatro atores interpreta­m os dilemas do retirante ao longo de meia hora. Sob a direção de Kiko Marques, o elenco formado por Eduardo Silva, Paula Cohen, Fernando Paz e Amazyles de Almeida não percorrem o auto em sua totalidade, mas apresentam os trechos principais.

A diretora fala de uma “relação histórico-afetiva” com “Morte e Vida Severina”. Em 1963, ela integrava o grupo da Escola de Teatro da Universida­de Federal da Bahia quando foi realizada uma das primeiras encenações do poema. A direção era do escritor e filósofo Luis Carlos Maciel.

“Como dizia Brecht, o texto de João Cabral consegue tocar o coração e a consciênci­a”, diz Eugênia.

Sem palco, caiu sobre os ombros dos envolvidos o desafio de levar para o vídeo algo da pulsão do teatro. Surpreende­nte, o resultado pode ser visto a partir desta terça-feira (4), às 16h, no endereço do Sesc no YouTube.

Não se trata de uma live. Depois de receber em casa peças do figurino e da cenografia, cada ator montou sua própria cena.

“Todos sempre se espantaram com minha calma às vésperas das estreias. Mas desta vez estou preocupada”, conta Eugênia. Ela revela o receio para, logo em seguida, retomar a confiança, apoiada sobretudo no talento dos atores, “sempre capazes de se jogar no abismo”.

Com supervisão de Mika Lins e edição dos vídeos a cargo de Sérgio Glasberg, o projeto terá em setembro outro clássico brasileiro, “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos.

Morte e Vida Severina Projeto 7 Leituras Diálogos do Isolamento

Direção: Kiko Marques. Com Eduardo Silva, Paula Cohen, Fernando Paz e Amazyles de Almeida. A partir de

16h de ter.(4) em youtube.com/ sesc24dema­ioyoutube. Acesso gratuito.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil