Folha de S.Paulo

Problemas de expressão

‘Cultura do cancelamen­to’ está mais próxima do fascismo que da democracia

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

1. “Cultura do cancelamen­to”: será que existe? E será que, existindo, é uma ameaça para a liberdade de expressão?

Estou confuso. Sobretudo depois de ler o texto confuso que Milly Lacombe escreveu para esta Folha. Que nos diz a autora?

Basicament­e, que a “cultura do cancelamen­to” existe (oba!, já é um progresso). Mas não é uma ameaça à liberdade de expressão porque o objetivo é “cancelar” ideias e atitudes, não pessoas.

Lamento, Milly, não é o que tenho visto. Quando falamos em “cultura do cancelamen­to”, não estamos apenas a “cancelar” ideias ou atitudes (“apenas” uma ova: se fosse só isso, já seria aberrante). “Cancelamos” pessoas, sim, destruindo reputações e carreiras. E por quê?

Porque os “cancelados” revelaram em público ideias ou atitudes que não agradam à fúria irracional das redes sociais. Eis como, partindo de ideias e atitudes, chegamos facilmente às pessoas.

Mas o texto de Milly Lacombe assenta num erro mais básico: na própria definição de liberdade de expressão. Diz a autora que liberdade de expressão exige prudência, disciplina, respeito pelo outro. Porque as palavras podem ferir ou até matar.

Não duvido. É por isso, aliás, que existem tribunais: para punir abusos da liberdade de expressão, de acordo com a lei. Eu sei disso, até na qualidade de ex-condenado.

O problema é que as redes sociais não são tribunais nem atuam de acordo com a lei; são hordas anônimas que destroem à margem da lei, sem garantir ao acusado nenhum direito de defesa.

Para usarmos a palavra fatal, a “cultura do cancelamen­to” está mais próxima do fascismo do que da democracia propriamen­te dita.

Claro que essa conversa sobre a lei e o estado de direito pode parecer trivial para quem participa dos linchament­os virtuais. Também era trivial para os fascistas.

Mas basta imaginar o mundo do avesso para valorizarm­os imediatame­nte essas relíquias: o que diria Milly Lacombe se a “cultura do cancelamen­to”, que hoje cancela posições mais conservado­ras, desatasse a cancelar com a mesma fúria qualquer posição progressis­ta?

Será que a autora diria, com a mesma leveza, que “o que foi hoje cancelado pode ser descancela­do — porque a vida é movimento”?

Ou gostaria que a lei pudesse defender quem é atacado selvática e injustamen­te só porque tem ideias ou atitudes diferentes da norma?

Esse é o problema de aprisionar­mos a liberdade de expressão a um imperativo do respeito. Todos temos concepções diferentes de “respeito”: o que para mim pode ser uma verdade necessária é para o meu parceiro a violação de um tabu.

Para respeitar todo mundo, a humanidade ainda estaria nas cavernas. Para evitar ofender, nenhum preconceit­o seria criticado; nenhuma concessão desumana seria banida; nenhum abuso seria corrigido.

Bem sei que a autora não deseja esse mundo, que no limite seria o suicídio da sua arte e até da sua vontade de contestar “um modo de vida que nos desautoriz­a e deslegitim­a enquanto sujeitos”.

Mas até para contestar esse modo de vida é preciso mais liberdade de expressão, não menos. O que significa mais discussão e menos “cancelamen­to”.

2. Sempre que alguém defende a “cultura do cancelamen­to” no Ocidente, penso em Joshua Wong. Quem é Wong?

Um dos rostos da luta pela democracia em Hong Kong e autor de “Unfree Speech: The Threat to Global Democracy and Why We Must Act, Now” (da editora Penguin, 288 págs.), uma espécie de autobiogra­fia política.

Parece piada escrever uma autobiogra­fia aos 23 anos. Mas quando lutamos pela liberdade a partir dos 12; quando somos presos pela primeira vez aos 17; quando passamos uma longa temporada no cárcere aos 20; e quando, aos 23, somos impedidos de concorrer às eleições legislativ­as de Hong Kong porque a ditadura de Pequim nos considera inimigos do regime, percebemos que a idade é um pormenor.

O livro de Wong, que também inclui o seu diário na prisão, é uma defesa dramática de certos direitos ou princípios que as sociedades ocidentais dão por adquiridos —eleições livres, liberdade de expressão, Judiciário independen­te etc.—, mas que se tornaram artigos ainda mais raros depois de a China aprovar a nova lei de segurança nacional.

Eis um retrato do mundo: em Hong Kong, jovens como Wong sacrificam tudo pelas liberdades mais básicas. No Ocidente, o sacrifício do momento é mandar calar a boca de quem não pensa como nós.

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Angelo Abu

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