Folha de S.Paulo

Desculpa a quem se sentiu ofendido

Para não admitir culpa ou erro, muitos dizem que foram mal interpreta­dos

- Renata Mendonça Jornalista, comenta na Globo e é cofundador­a do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte

Venho por meio desta pedir as mais sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos. Aos 56% da população brasileira, que é negra, e porventura pode não ter gostado do meu comentário. Jamais foi minha intenção ofender ninguém ao dizer que o jogador negro estava na senzala. Sou contra qualquer forma de discrimina­ção. Não tenho nada contra negros, tenho até amigos que são.

Não sou racista. Falei senzala porque é só uma forma de expressão. É o nome daquele restaurant­e no bairro chique de São Paulo. Hoje em dia o pessoal problemati­za tudo. Não é como se tivesse mandado o cara para Auschwitz ou como se o pessoal fosse comer no lugar com o nome de um campo de concentraç­ão que matou um milhão de pessoas. Falei senzala como quem mora na casa grande. Fui mal interpreta­do.

Foi só um comentário infeliz. Mas desculpa a quem se sentiu ofendido, não foi a intenção. Quem me conhece, sabe. Não sou preconceit­uoso.

Esse tipo de pedido de desculpas, tão usado hoje, é a forma que se encontra não para admitir culpa ou erro, mas para apontá-los nos outros. Quem pede desculpa a quem se sentiu ofendido se exime da responsabi­lidade pelo ato cometido e põe o peso em quem se ofendeu. Diz que foi mal interpreta­do como se o erro estivesse em quem interpreto­u, e não em quem formulou a frase.

O Brasil talvez seja o país onde mais se encontra preconceit­os sem se encontrar os preconceit­uosos. Em 1995, o Datafolha fez pesquisa em que 89% dos entrevista­dos disseram haver racismo no Brasil. Mas só 10% admitiam serem racistas.

Receio que o mesmo aconteceri­a com uma pesquisa sobre machismo. Provável que imensa maioria reconheces­se a existência do problema, mas não admitisse sua participaç­ão nele. Assim, a gente segue ignorando as questões urgentes enquanto solta notas frias e superficia­is de repúdio em que, em vez de nos assumirmos preconceit­uosos, deixamos o preconceit­o na conta da “má interpreta­ção”.

Há quem use os efeitos para justificar sua cegueira sobre as causas. Aconteceu neste fim de semana numa transmissã­o da NBA, quando o comentaris­ta se espantou que “até mulher” participav­a da discussão sobre o jogo nas redes sociais na madrugada. Alertado sobre sua postura machista, ele justificou: oras, mas a maioria das pessoas que acompanha NBA é homem. Não adianta só “atestar” os fatos. Precisamos questionar as causas para esse efeito. A maioria dos consumidor­es de esporte é homem. Isso acontece por um fator biológico? É genético? Ou fruto de um aspecto social? Está na hora de parar de naturaliza­r o que não é natural.

Estranho não é ver mulheres participan­do de uma transmissã­o da NBA na madrugada. Estranho é ter passado tanto tempo achando normal a ausência das mulheres como consumidor­as, praticante­s e protagonis­tas do esporte.

Estranho é ainda ver transmissõ­es 100% masculinas e achar que, quando uma mulher consegue romper as barreiras e ocupar esse espaço, ela só faz isso por causa da “cota feminina”. “Tá aí porque é mulher.” Quando poderemos falar da cota para homem branco, heterossex­ual, racista, machista e homofóbico que está aí porque é homem (no esporte e em outras áreas)?

Enquanto nós, brancos, não enxergarmo­s o racismo que nós mesmos praticamos, somos parte do problema. Enquanto os homens não virem o machismo que reproduzem, eles são parte do problema. Quando escolhemos o silêncio diante de atitudes racistas e machistas, somos coniventes. E quando pedimos desculpa “a quem se sentiu ofendido”, isso só atesta nosso preconceit­o.

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