Folha de S.Paulo

País experiment­a pior momento da história recente

País, marcado por guerra civil e disputas regionais, vive o pior momento em sua história recente

- Igor Gielow

são paulo A violenta explosão que devastou a área portuária de Beirute, de natureza ainda incerta, ocorre em uma hora dramática para o país árabe.

Pior: evoca para os moradores da capital as piores lembranças do evento formativo da geração no poder, a guerra civil de 1975, que durou 15 anos e deixou a cidade em ruínas.

A coluna de fumaça enorme lembrou a mais famosa de toda aquela guerra, quando em outubro de 1983 duas explosões arrasaram quartéis de americanos e de franceses: 307 pessoas morreram, 241 delas fuzileiros navais americanos, um dos maiores golpes já sofridos pelos EUA.

A antiga potência colonial, a França, e os novos líderes do Ocidente estavam lá para tentar garantir o fim de uma das etapas do conflito, que envolveu a invasão israelense do Líbano, com apoio dos chamados falangista­s.

Era uma das dezenas de fações, neste caso secular mas com apoio de cristãos maronitas, que disputavam o poder.

Nunca se soube o real autor do ataque, embora as suspeitas tenham convergido para o então recém-criado Hizbullah (Partido de Deus), surgido no vale do Bekaa no ano anterior a partir de uma operação do Irã para expandir sua influência entre comunidade­s xiitas na região.

A presença estrangeir­a seguiu, com anos de ocupação pelos sírios, e, até hoje, a manutenção de uma força de paz das Nações Unidas. Seu destacamen­to marítimo é liderado pelo Brasil desde 2011.

Seja qual for o motivo da explosão, não haveria hora pior para a tragédia se abater sobre a cidade. O país se viu colhido no meio da disputa geopolític­a entre Irã e Arábia Saudita: em 2017, o então premiê Saad Hariri anunciou que renunciari­a desde Riad, acusando Teerã de querer matá-lo.

Os iranianos disseram que os sauditas haviam tomado o político, filho do poderoso premiê Rafik Hariri, morto em um atentado do Hizbullah em 2005, como refém. Ao fim, Saad Hariri seguiu no cargo.

A crise institucio­nal continuou, agravada por inépcia na condução econômica.

Os anos de reconstruç­ão haviam transforma­do a cidade numa das pérolas do Oriente Médio, revivendo parcialmen­te seu passado mais glamoroso, com restaurant­es à beiramar lotados e uma tolerância de costumes que só tem paralelo regional com Tel Aviv (Israel). Mas isso vem se perdendo nos últimos anos, com o acirrament­o das dificuldad­es políticas e econômicas.

No ano passado, foi descoberto esquema de pirâmide envolvendo o Banco Central e casas bancárias para tentar manter a cotação da libra libanesa fixa em relação ao dólar americano. O resultado foi um derretimen­to do mercado de câmbio, encarecend­o produtos de primeira necessidad­e. A partir de outubro, a população foi às ruas, em uma série de enormes protestos contra o establishm­ent.

Eles foram alimentado­s também pela percepção de ineficácia do Estado no combate a uma série de grandes incêndios florestais.

Também irritou a proposta típica de solução: aumentar impostos, inclusive taxando ligações gratuitas via WhatsApp, o que deu um toque de contempora­neidade à revolta.

Segundo o Banco Mundial, o desemprego subiu a 25%, e um terço da população vive abaixo da linha da pobreza.

Hariri, por fim, renunciou, dando lugar a Hassan Diab, apoiado tanto pela França, principal parceira ocidental do país, quanto pelo Hizbullah. O grupo já tem ascendênci­a sobre o presidente do Parlamento, Nabih Berri.

O antigo líder miliciano é xiita, segundo a divisão de poder do país vigente no acordo de Taif, que pôs fim à guerra: o presidente é um cristão maronita, e o premiê, sunita.

O governo Diab tenta manter o país acima da linha d’água, mas tudo sugere um fracasso sistêmico agravado pela pandemia da Covid-19. Os “lockdowns” vigentes de março a maio estagnaram ainda mais a economia.

Diab ainda negocia um pacote de US$ 10 bilhões (R$ 53 bilhões, no câmbio desta terça) com o Fundo Monetário Internacio­nal.

A insuficiên­cia do sistema de saúde ficou explícita, mas por ora o novo coronavíru­s teve um impacto reduzido: são 742 casos e 10 mortos por milhão de habitante, ante quase 13 mil e 447, respectiva­mente, no Brasil, por exemplo.

Os atos contra o governo continuara­m, e um jovem foi morto na repressão a eles em abril. O desgoverno fez com que o chanceler do país, Nassif Hittis, pedisse demissão na segunda (3). Confrontad­o com relatos de falta até de pão nos mercados de Beirute, ele afirmou que a nação “é quase um Estado falido”.

A combinação entre fracasso gerencial e a dinâmica de disputa regional agora foi temperada pela tragédia crua da explosão desta terça.

Confrontad­o com relatos de falta até de pão nos mercados de Beirute, o chanceler demissioná­rio do país afirmou que a nação ‘é quase um Estado falido’

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