Streaming alavanca séries de todo o mundo e ameaça domínio anglófono
Streaming alavanca séries do mundo todo a líderes de audiência e ameaça o inglês como a língua franca da TV global
são paulo Se você é assinante da Netflix, provavelmente já clicou em alguma série original da plataforma e ouviu sair da boca de seus personagens palavras que não eram inglês, sejá lá de que idioma fossem.
Isso porque alguns dos maiores sucessos do catálogo do streaming, hoje, não são importados dos Estados Unidos ou do Reino Unido, que por anosdominaramoqueeraconsumido em larga escala na televisão e no cinema ocidentais.
Com a ascensão dos serviços de streaming, encabeçada pela Netflix, os últimos anos têm servido de palco para uma internacionalização dos conteúdos audiovisuais de grande sucesso ao redor do globo.
“La Casa de Papel”, “O Último Guardião”, “Dark”, “Osmosis”, “Silêncio na Floresta” e “Kingdom” são hoje algumas das pérolas da plataforma, justamente porque romperam a barreira do idioma e foram abraçadas numa ampla gama de países. Elas são, nesta ordem, produções da Espanha, Turquia, Alemanha, França, Polônia e Coreia do Sul.
A explicação mais óbvia para essa tendência é a facilidade de acesso a obras que dificilmente viajariam o mundo se dependessem só de emissoras locais, seja por questões culturais ou burocráticas. No caso da Netflix, a empresa está presente em cerca de 190 países, o que facilita a distribuição maciça e simultânea de conteúdos.
Mas isso não necessariamente explica o sucesso que essas séries de sotaques estranhos e costumes peculiares encontram a quilômetros de distância de suas raízes. O espectador também está mudando seu comportamento, enquanto, paralelamente, produtoras locais têm se aventurado e se aperfeiçoado, graças às novas possibilidades de distribuição garantidas pelo streaming.
“Enquanto conteúdo local tradicionalmente tende a ter um apelo maior com audiências locais, há sinais claros de que o público mundial está desenvolvendo gostos e interesses mais amplos e diversos”, diz Louis Brennan, professor na universidade irlandesa Trinity College, que acompanha há anos a expansão da Netflix.
“A Netflix é um fenômeno internacional e está contribuindo para um cenário cultural mais globalizado. Para isso, tomou como estratégia tanto a expansão de seu mercado — buscando assinantes em todo o mundo—, quanto a internacionalização de suas fontes, adquirindo e produzindo conteúdo em várias regiões.”
Segundo Brennan, os fatores que determinam onde é interessante manter uma sólida base de produção local incluem o tamanho do mercado naquele país, a quantidade de lugares com características culturais semelhantes e a competitividade na região.
“E, com o crescimento populacional no mundo não anglófono, é natural que haja uma menor dominância das produções em inglês”, acrescenta.
Ainda de acordo com ele, essa estratégia está contribuindo para um aprimoramento e uma diversificação no que é produzido em países que, tradicionalmente, são bombardeados por conteúdo gringo.
Esse é o caso da Turquia, que hoje exporta algumas das obras que mais agradam ao público brasileiro da Netflix, como a já lembrada “O Último Guardião” e o filme “Milagre na Cela 7” —ambos ficaram vários dias no ranking dos mais vistos do serviço no Brasil.
“Antesnósproduzíamosmuitos romances e comédias. Agora, com o streaming, nós estamos tentando diversificar os conteúdos turcos. Não era fácil testar gêneros diferentes, mas agora nós estamos trabalhando nisso”, explica Pelin Distas, diretora de produções originais da Netflix na Turquia.
“Esse alcance global foi uma surpresa para o mercado, mas eu acho que, se você está criando obras com autenticidade em relação ao contexto no qual estão inseridas, as pessoas vão gostar. É algo fresco, original, novo, único e, portanto, muito poderoso.”
Mesmo sendo vaga em relação a seus dados, a Netflix informa que mais de um terço da audiência de séries e filmes turcos, em seu mês de estreia, vem da América Latina
Ao lado da Turquia, a Espanha é hoje um grande exportador de sucessos. As máscaras da série “La Casa de Papel” são reconhecidas mundialmente, mas outros títulos, como “Elite”, “Vis a Vis”, “Merlí”, “O Píer”, “As Telefonistas” e o filme “O Poço” têm bases de fãs grandes e sólidas no Brasil e em vários outros lugares.
Parte de dois mundos, o da TV tradicional e o do sob demanda, a HBO também aposta nessa pluralidade de narrativas. Na semana passada, a empresa anunciou seis novas produções originais a serem rodadas no Brasil, já que o país também tem ganhado projeção mundial —a série “3%”, por exemplo, começa neste mês sua quarta temporada depois de trilhar uma boa carreira internacional.
“Esse processo de globalização mudou os hábitos de consumo e ajudou a impulsionar as produções de idioma não inglês”, diz Roberto Rios, vicepresidente de produções originaisdaHBOnaAméricaLatina.
“Três elementos formam essecírculovirtuoso—opúblico com interesses mais diversos, as facilidades tecnológicas das plataformas e mais oportunidades para que criativos de todo o mundo possam produzir e distribuir seus conteúdos.”
Americanos e britânicos podem até lamentar o enfraquecimento de sua hegemonia na indústria do audiovisual, mas eles também estão contribuindo para o fenômeno. “O mundo anglófono está se tornando mais receptivo a produções em língua não inglesa”, diz Louis Brennan.
Antes motivo de piada, a máaceitação de filmes e séries em línguas estrangeiras nos Estados Unidos parece estar ficando mesmo para trás. Prova disso é a conquista do Oscar de melhor filme do sul-coreano “Parasita”, no início do ano.
“Diria que nós estamos seguindo em direção a um cenário mais rico, diverso e variado no entretenimento”, afirma Brennan. “Não só por causa da questão do idioma, mas também pela pluralidade de temas que essa globalização permite que sejam tratados.”