Folha de S.Paulo

Advocacia em festa, Bolsonaro também

Augusto Aras quer reformar a Constituiç­ão por debaixo dos panos

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

A vida exige coragem e coragem não falta a Augusto Aras. Pelo menos foi com essas palavras que o procurador-geral da República dedicou sermão a colegas dias atrás. Defendia diálogo, mas declarou encerrada a sessão antes que alguém suspirasse. Mais que indigno, quebrou decoro ao insinuar que uma das grandes procurador­as do país “talvez não tenha família, ou talvez tenha”. Interprete.

Aras reagia às objeções de colegas contra suas críticas ao MPF feitas em reunião com juristas, advogados atuantes na

Lava Jato entre eles. “A advocacia está em festa”, diziam.

Aluno aplicado do bacharelis­mo, Aras preenche com platitudes o vácuo de ideias e recita termos de efeito moral para elogiar sua gestão: “república, legalidade, moralidade, transparên­cia”. Não lhe peça para exemplific­ar, pois ele encerra a sessão.

Quando fala dos vícios que supõe combater, tira do bolso outra listinha: “aparelhame­nto, caixa-preta, MPF do B, processos escondidos”. Aras afirma promover igualdade genuína, não a “igualdade demagógica do anarco-sindicalis­mo”. “Como tudo que ganha um ismo ao final, e vira lavajatism­o, apresenta dificuldad­es.”

Não há dúvida de que a Lava Jato violou a lei e intoxicou a política com discurso anticorrup­ção maniqueíst­a e persecutór­io, denominado­r comum de todos os ataques à democracia do século 20. Propôs revolução redentora por meio do varejo criminal contra adversário bem definido. Quebrou rituais de imparciali­dade entre acusador e julgador. Tinha grande oportunida­de e se perdeu.

O estrago foi feito, mas desconfie do que Aras quer colocar no lugar. Sua proposta adota modelo de Ministério Público que a Constituiç­ão recusou. Em vez de hierarquia e verticaliz­ação, optou-se por independên­cia funcional.

Significa que o PGR não é chefe de procurador­es da República. Retém as atribuiçõe­s mais poderosas (como a de processar o presidente) e competênci­as de chefia administra­tiva. Assim se organiza a unidade, a coordenaçã­o sem subordinaç­ão.

Ao pedir livre acesso, sem critério, a investigaç­ões sigilosas, Aras não vai matar a tecnologia de perseguiçã­o da Lava Jato. Apenas a centraliza e a torna mais perigosa. E poderá oferecê-la de bandeja ao presidente da República, sob recompensa.

A pauta da reunião com advogados vendia falso dilema: ou se é aliado da Lava Jato, ou se é aliado de Aras. Se apenas as duas opções estão na mesa é porque a opção constituci­onal foi embora sem aviso. Arapuca perfeita, pois ambos os caminhos cultivam o bolsonaris­mo.

Aras é o único operador da política brasileira capaz de confundir os lados no jogo da corrosão democrátic­a: sob a promessa de destruir a Lava Jato, consegue fazer a mediação entre Bolsonaro, centrão, partidos de esquerda e ministros antilavaja­tistas do STF. De brinde, leva a cumplicida­de das Forças Armadas, acuadas por sua incompetên­cia amazônica e pandêmica.

Ao concentrar poder e informação sigilosa, Aras disporá de arma extraordin­ária de intimidaçã­o e chantagem. Uma Lava Jato monocrátic­a e turbinada, sem mecanismo de controle.

As forças-tarefas espalhadas pelo país, bem ou mal, sujeitamse à supervisão judicial. Em Curitiba esse controle falhou de modo espetacula­r. O frenesi anticorrup­ção agraciou a força tarefa com a credencial do bommocismo e Sergio Moro com o dom da infalibili­dade e da autolegali­dade (poder de inverter o significad­o da lei). Tínhamos um juiz em cruzada messiânica, um TRF de joelhos e um STF deslumbrad­o.

Foram lenientes também a corregedor­ia e o Conselho Nacional do Ministério Público. Que se faça diagnóstic­o informado da patologia e se encontre um remédio eficaz. Concentrar poderes nas mãos do PGR é multiplica­r a dose do veneno.

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