Folha de S.Paulo

Dez razões para rejeitar o artigo 10 da lei das fake news, que rastreia mensagens

Dispositiv­o é ineficaz para o que se propõe e soluciona problemas que não existem criando outros

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Coletar, armazenar e tratar metadados é tão perigoso quanto acessar o conteúdo das comunicaçõ­es privadas. Não é verdade que a coleta não viole a privacidad­e. Comportame­nto, padrões de consumo, relações sociais, movimentaç­ão e até a identidade: metadados podem ‘dizer basicament­e tudo sobre a vida de uma pessoa’

Diego R. Canabarro e Paulo Rená Canabarro é encarregad­o de políticas públicas para a América Latina na Internet Society e doutor em ciência política pela UFRGS; Rená é professor da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da UniCEUB e integrante da Coalizão Direitos na Rede

Uma das principais controvérs­ias do trabalho do Congresso em 2020 é o projeto de lei n° 2630, de 2020, que “Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabi­lidade e Transparên­cia na Internet”.

De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e relatado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA), o texto que ficou conhecido como “PL de combate às fake news” foi aprovado pelo Senado em 30 de junho e aguarda análise pela Câmara dos Deputados.

Um grupo informal de deputados tem realizado um ciclo de debates sobre a matéria. Um tema central de divergênci­a tem sido a chamada “rastreabil­idade” de mensagens encaminhad­as em aplicativo­s de mensagem como o WhatsApp ou o Telegram, prevista no artigo 10.

Pela proposta, os serviços de mensagem deverão manter por três meses o registro de mensagens “encaminhad­as em massa”. Assim serão definidas as que, em um período de 15 dias, sejam enviadas por mais de cinco usuários e recebidas por mais de mil usuários. A pretensão declarada é enfrentar a desinforma­ção, a partir da ideia de que essas mensagens “em massa” não são privadas e deveriam ser vigiadas.

Os registros deverão indicar quem encaminhou, data, horário e o número total de usuários que receberam a mensagem em questão. E estipulase necessidad­e de autorizaçã­o judicial para acesso de terceiros a esses registros, seja para constituiç­ão de prova em uma investigaç­ão criminal, seja para instruir um processo penal já ajuizado.

A despeito dessa limitação, entendemos que o artigo 10 deveria rebatizar o projeto de lei. Não se trata de combate a fake news, tampouco de responsabi­lidade, mas de um “PL da rastreabil­idade das comunicaçõ­es pessoais” ou “PL da vigilância em massa em apps de mensagem”.

Basicament­e, esse dispositiv­o do PL 2630/2020 é ineficaz ao que se propõe e soluciona problemas que não existem, ao preço de criar vários novos problemas graves.

Embora tenha havido muita discussão pública, quase nunca o assunto é tratado com a devida franqueza. São negligenci­adas as implicaçõe­s da proposta e a complexida­de de sua implementa­ção.

É gritante a inadequaçã­o das analogias e metáforas em defesa do texto. Por isso, listamos, de maneira objetiva, dez razões para que a Câmara dos Deputados rejeite integralme­nte o artigo 10 do projeto.

1. Manter registros de “cadeias de encaminham­ento de mensagens” vincularia diretament­e usuários a conteúdos de mensagens instantâne­as. A proposta busca identifica­r quem encaminhou uma mensagem considerad­a ofensiva ou danosa. Pretende-se, a partir do conteúdo conhecido de uma mensagem, chegar ao usuário responsáve­l por determinad­o encaminham­ento.

Todavia, a partir do usuário, igualmente será possível chegar a todas mensagens associadas a ele (ainda que por meio de metadados relativos ao conteúdo). A base de dados resultante permitirá saber quem conversa com quem, quando e o quê (mesmo que o conteúdo armazenado seja codificado ou criptograf­ado).

2. A proposta quebrará a criptograf­ia de ponta a ponta. A criptograf­ia envolve a codificaçã­o de dados e informaçõe­s para permitir que somente tenha acesso quem possua as chaves necessária­s para decodifica­ção. Na modalidade “de ponta a ponta”, a criptograf­ia assegura o sigilo do conteúdo das mensagens até mesmo contra o provedor do serviço de mensagens. Esse modelo se adotou como padrão nos apps de mensagens instantâne­as, sobretudo após o escândalo de espionagem denunciado por Edward Snowden.

O artigo 10 não aborda a criptograf­ia das mensagens, mas obriga os provedores como WhatsApp a bisbilhota­r dispositiv­os e fluxos de mensagens para coletar e armazenar dados sobre o que seus usuários enviam e recebem.

Logo, debilita a criptograf­ia no modelo de ponta a ponta e diminui considerav­elmente a confidenci­alidade que se poderia esperar do serviço.

3. Registrar uma “cadeia de encaminham­ento de uma mensagem” não equivale a manter “registros telefônico­s”, ou “registros de conexão” e “de acesso a aplicação de internet”. Os registros telefônico­s (que devem ser guardados por cinco anos pelas operadoras de telefonia fixa e móvel) apenas identifica­m data, horário, origem e de destino de determinad­a ligação. Já provedores de serviços online, nos termos do Marco Civil, devem guardar (por seis meses) só números IP atribuídos aos computador­es ou celulares quando acessam seus serviços.

Nenhum desses registros vincula diretament­e usuários ao teor das ligações ou dos dados recebidos e enviados (como será feito com os encaminham­entos de mensagem, caso o PL 2630 seja aprovado integralme­nte).

4. Coletar, armazenar e tratar metadados é tão perigoso quanto acessar o conteúdo das comunicaçõ­es privadas. Não é verdade que a coleta de metadados não viole a privacidad­e. Comportame­nto, padrões de consumo, relações sociais, movimentaç­ão geográfica e até a identidade: metadados podem “dizer basicament­e tudo sobre a vida de uma pessoa”, nas palavras de um ex-procurador geral da NSA, a maior agência de inteligênc­ia do planeta. O artigo 10 do PL 2630 trata de metadados relacionad­os tanto aos usuários e, pior, quanto ao teor de comunicaçõ­es privadas.

5. Singulariz­ar uma mensagem e identifica­r de forma inequívoca sua autoria é praticamen­te impossível.

Não há meio infalível de gerar uma “impressão digital” para mensagens instantâne­as. Ainda que arquivos multimídia (vídeo, imagem, som) possam ser marcados com certo grau de confiabili­dade, a “identidade” de qualquer texto é alterada pela mera adição, supressão ou mudança de uma única letra ou outro caractere (como um pouto ou uma vírgula).

6. Prever qual mensagem será ou não viral é impossível. É inviável prever a escala e o alcance de um conteúdo online. Assim, durante os 15 dias previstos no artigo 10 os provedores teriam que preservar dados de todas mensagens de todos usuários e realizar uma comparação constante do teor de todas elas, para calcular quais chegaram a 1.000 encaminham­entos por 5 usuários.

Sendo recorrente a viralizaçã­o de conteúdos originais de grupos privados (família, amigos, equipes de trabalho) divulgados sem consentime­nto, o critério do PL levaria ao rastreamen­to de mensagens inocentes por um mero aspecto numérico, fora do contexto inicial e a despeito de intenção na origem ou no encaminham­ento.

7. Burlar “o registro da cadeia de encaminham­ento” é muito fácil. Ao focar no encaminham­ento, o PL onera sem justificat­iva e em excesso quem encaminha mensagens de boa-fé e não será capaz de resolver o problema da distribuiç­ão organizada de desinforma­ção.

Encaminhar é apenas uma das múltiplas formas de espalhar mensagens instantâne­as, sejam elas avisos úteis ou mentiras. Antes, tal conteúdo (normalment­e publicado e em algum site) já foi enviado a grupos e usuários individuai­s, por exemplo, via listas de transmissã­o ou por sistemas automatiza­dos que até fingem digitar cada letra de uma mensagem. E, mesmo no encaminham­ento, a cadeia pode ser facilmente quebrada por pequenas mudanças no conteúdo ou pelo uso de um número de telefone estrangeir­o, fora da jurisdição brasileira.

8. A proposta reduzirá a segurança do ecossistem­a digital no Brasil como um todo. Além do risco à confidenci­alidade da comunicaçã­o por mensagens instantâne­as, a proposta aumentaria a complexida­de da arquitetur­a técnica desses aplicativo­s, ao obrigar a criação e manutenção de enormes bases de dados para permitir a correlação de dados de usuários e de mensagens. O funcioname­nto de sistemas mais complexos é mais suscetível a falhas de funcioname­nto e a vulnerabil­idades explorávei­s por ataques, além de elevar a chance de vazamentos de dados pessoais.

9. A proposta gerará prejuízos econômicos ao Brasil. A minimizaçã­o do tratamento de dados pessoais é assegurada como princípio jurídico no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Mais do que proteger a privacidad­e e outros direitos fundamenta­is, bem como conferir mais segurança cibernétic­a, essa garantia, na prática, reduz custos operaciona­is e minimiza riscos para o desenvolvi­mento de serviços e aplicações de internet.

O PL atrapalha o país: reduz a proteção de dados pessoais necessária para fazermos negócios internacio­nais vinculados à economia digital e, ainda, aumenta os custos operaciona­is para provedores atuarem no Brasil.

10. A proposta é ilegal e inconstitu­cional. Essa “maximizaçã­o” da coleta e do tratamento de dados pessoais contraria o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e até a Constituiç­ão Federal.

A autodeterm­inação informativ­a foi reconhecid­a pelo Supremo Tribunal Federal como uma garantia fundamenta­l decorrente da vida privada e da intimidade, cuja proteção não se contrapõe, mas constitui condição necessária à efetivação de direitos de minorias, tais como honra, liberdade de expressão e saúde.

 ?? Pedro Ladeira - 25.jun.20/Folhapress ?? Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro fazem ato contra o projeto de lei das fake news em frente ao Congresso
Pedro Ladeira - 25.jun.20/Folhapress Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro fazem ato contra o projeto de lei das fake news em frente ao Congresso

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