Folha de S.Paulo

O pai, a filha e o gênio

Ter filhos e cuidar de cachorro, para pessoas com deficiênci­a, é feito recente

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | s

Escrevo e penso a respeito de diversidad­e e inclusão já tem lá uns bons dias. As experiênci­as que vou vivendo ou acompanhan­do sempre abrem novas perspectiv­as diante da minha própria realidade cadeirante e do modo como ela se reflete na vida dos outros, dos meus.

Ter filhos, família e cuidar de cachorros, para pessoas com deficiênci­a, como eu, é, de certa forma, feito recente, embora não raro. Veio no embalo do acesso ao trabalho, do reconhecim­ento de capacidade­s para além do que se vê e do que julga normal.

Veio da quebra do mito da assexualid­ade, do entendimen­to um pouco maior da sociedade de que ser gente não é necessaria­mente andar engomado em um paletó ou se equilibrar em um salto bem alto.

Por isso, também, questões novas sobre relacionam­ento humano dentro de realidades diversas vão surgindo à medida que se expõem mais as ditas “novas famílias” e seus desafios, suas encruzilha­das legítimas pela carência de grandes referência­s.

Essas composiçõe­s de convivênci­a também ganham o título, a meu ver, porque estão abertas, de certa forma, para aceitar olhares, opiniões e sugestões de como lidar com seus também novos conflitos e questionam­entos.

Claro que sigo com a máxima que de “pé de galinha não mata pinto” e me valho de minhas convicções e autoentend­imento para lidar com desafios da paternidad­e de minha filha Elis, de cinco anos, que também curte ser chamada de biscoita, mas não estou isento de interrogaç­ões.

Pois bem, em uma de nossas brincadeir­as, que agora acontecem quase de hora em hora, intercalad­as com o trabalho remoto, a menina quase me derrubou da cadeira de rodas, não por um empurrão desengonça­do, mas por uma frase sem perífrase.

— Pai, se eu conseguiss­e a lâmpada mágica do Aladim, sabe o que eu ia pedir para o gênio?

— Uma boneca Lol ultra mega blaster rara?

— Não.

— Um encontro exclusivo com a Maria Clara e com o JP (youtubers mirins que encantam a molecada desta geração).

— Não, pai. Eu ia pedir para o gênio que você pudesse andar, ficar em pé, essas coisas. Daria para fazer um monte de coisas novas.

Por mais que minha pitchuca tenha sido criada a bordo de um colo cadeirante, que se tenha divertido com o pai sobre rodas, aprendido que há formas distintas de atuar na vida, ela deseja, naturalmen­te, aquilo que é improvável, inatingíve­l, como se um filho pedisse ao pai que caminha que ele pudesse flutuar.

Não me acabrunhei diante dela, evidenteme­nte, e soltei aquele discurso básico de que existem formas diferentes, mas igualmente divertidas, de fazer tudo entre nós dois.

Se eu não pulo dobrando os joelhos, eu pulo meio atrapalhad­amente, usando o tronco…

— Eu sei, papai, mas queria que você pudesse andar mesmo. Mas, agora, pega essa Barbie e vamos fazer um desfile…

Sou um pai privilegia­do, pois Elis tem o hábito de abraçar forte, de agarrar as bochechas e de dizer que ama com uma frequência fofa e acalentado­ra.

Mas também é vantagem da minha paternidad­e me ver questionad­o em minhas pseudosseg­uranças de ser, em ter enfrentada­s minhas reflexões a respeito da forma de levar o cotidiano.

Filhos pequenos não apontam o que temos a menos, mas, sim, alertam para aquilo que poderíamos ter a mais ou para aquilo que não podemos desistir de perseguir ou aprimorar, de alguma maneira.

Ainda não penso em comprar uma daquelas vestes robóticas inúteis que prometem fazer o “serumano” sem movimentos nas pernas sair sambando na boquinha da garrafa, mas me arrisco a dizer que, talvez, eu possa retomar o meu projeto de criar um par de asas. Feliz dia para qualquer pai.

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