Folha de S.Paulo

Após visita, jornalista perde pai e tio em 3 dias

Rose Castro, 58, também contraiu o novo coronavíru­s em Marília (SP) e investiga sequelas da doença em seu corpo

- Carolina Vila-Nova

americana (sp) Quando o pai começou a ficar “molinho” há pouco mais de duas semanas, a jornalista Rose Castro, 58, pensou logo no risco de uma pneumomia e levou-o a uma clínica, na cidade de Marília, no interior de São Paulo.

“Eu sou jornalista, sou bem informada. Aqui em casa é o maior capricho, a gente tem paninho fora, já tem água com cândida, o sapato sujo nem entra”, diz ela. “Meu pai só saía de máscara. No final, esse pessoal de idade vai ficando irrequieto, né? Eu dizia: ‘tá bom, vai buscar o pão na padaria’. Ele ia bem cedinho, de máscara, para não cruzar com as pessoas.”

“Me passou tudo, só não me passou Covid-19 na cabeça”, afirma ela.

Aquele 21 de julho foi o último dia em que viu seu pai, Orioswaldo Fernandes, 81, pessoalmen­te. Da clínica, ele foi levado ao pronto atendiment­o, onde os médicos constatara­m baixa oxigenação no sangue e que 75% de seus pulmões estavam comprometi­dos. Foi então levado para internação no Hospital Universitá­rio de Marília. No dia seguinte, saiu a confirmaçã­o de que era Covid-19.

Na véspera, a jornalista mesma havia procurado o Prontomed, da Unimed de Marília, depois de notar perda de olfato, sem febre. Por precaução, médicos haviam prescrito dexametaso­na, azitromici­na e vitaminas C e zinco. O pai brincou. “Eu não! Eu estou ótimo, estou sentindo cheiro de tudo!”

Orioswaldo­morreunaúl­tima quinta (30). No dia seguinte, a filha acompanhou o enterro, sem velório, com uma amiga.

Rose conta que ambos adoeceram depois que seu tio, Luiz Eduardo Fernandes, veio de Americana (SP) fazer uma visita por ocasião do aniversári­o do irmão, em 13 de julho. Passaram o fim de semana juntos. Luiz Eduardo não sabia que estava com Covid-19.

O pai estava internado quando Rose soube pelo primo que o tio também havia sido hospitaliz­ado e intubado na cidade próxima.LuizEduard­omorreu nesta segunda (3) no Hospital Municipal, aos 74 anos, três dias após a morte do irmão.

Nos dois primeiros dias da internação do pai, Rose conseguiu falar com ele pelo celular. “Para tentar humanizar um pouco, toda tarde uma psicóloga te liga e te coloca para falar com a pessoa. Fiz isso duas vezes. Depois ele já não podia falar mais, só me ouvia”, diz.

“Cada vez que chegava um boletim médico era ‘piorou, piorou, piorou’, e aí ‘faleceu’.”

Professora da Universida­de Metodista por 17 anos e da Universida­de São Judas Tadeu por 25 anos, Rose se mudou de São Paulo para Marília depois da morte da mãe e de se aposentar, em 2017. Morava sozinha com o pai.

“Põe aí que eu odeio o Bolsonaro”, diz a jornalista. “É um absurdo um país como o nosso nessa situação, com essa corja indecente, desprepara­da, sem ministro da Saúde, falando de cloroquina.”

“Deveria ter um boicote geral por parte dos jornalista­s de não dar voz para essas pessoas indecentes, porque eles estão ajudando a matar a população”, afirma Rose Castro.

O presidente Jair Bolsonaro contraiu o novo coronavíru­s e diz ter se tratado com cloroquina, cuja eficácia contra a doença não tem aval científico.

Rose se recupera da Covid-19 em casa, onde faz isolamento há mais de uma semana. Ela conta que teve 25% dos pulmões afetados pelo vírus.

“Tenho que marcar com um pneumologi­sta para ele avaliar se ficou sequela e com um cardiologi­sta porque eu passei a ter taquicardi­a de vez em quando. Fico na dúvida se é sequela da Covid ou se é estado emocional abalado por conta das circunstân­cias.”

“Tenho que marcar com pneumologi­sta para ele avaliar se ficou sequela e com um cardiologi­sta porque eu passei a ter taquicardi­a de vez em quando. Fico na dúvida se é sequela da Covid ou se é estado emocional abalado Rose Castro jornalista

O interior de São Paulo apresenta estágios distintos de flexibiliz­ação da quarentena. Enquanto as regiões de Ribeirão Preto, Franca, Piracicaba e Registro estão na fase vermelha do Plano São Paulo —a mais restritiva de todas—, em outras áreas estabeleci­mentos comerciais têm sido reabertos.

Marília registra nesta segunda 1.079 confirmado­s de coronavíru­s, 612 suspeitos e 20 mortes. A região está na fase laranja do Plano São Paulo, do governo do estado.

Já Americana contabiliz­a 2.410 casos confirmado­s, 449 suspeitos e 82 mortes. A cidade faz parte do Departamen­to Regional da Saúde de Campinas, também na fase laranja.

 ?? Rose Castro no Facebook ?? Os irmãos Orioswaldo Fernandes (à esq.) e Luiz Eduardo, em encontro familiar na cidade de Marília (SP)
Rose Castro no Facebook Os irmãos Orioswaldo Fernandes (à esq.) e Luiz Eduardo, em encontro familiar na cidade de Marília (SP)

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