‘Víboras’ chefiam órgão que administra Theatro Municipal, dizem cartas
Missivas anônimas endereçadas ao Instituto Odeon viram caso de polícia e aumentam imbróglio em torno da gestão
são paulo Em fevereiro de 2019, as câmeras da Praça das Artes registraram um homem entre 50 e 60 anos, vestindo roupa preta. Ele deixou com a recepcionista uma carta para Carlos Gradim, presidente do Instituto Odeon, instituição que administra o Theatro Municipal de São Paulo, ali sediada.
Em páginas cheias de exclamações e erros de português, a missiva —assinada por João do Theatro, pseudônimo de identidade desconhecida— chamava os funcionários do Odeon de “víboras” e os acusava de fazer atrocidades contra “nossos colegas [do teatro] coitados que nada podem fazer”.
Dizia a carta que a administração pelo Odeon é um “festival sem limites de planilhas estranhas” e “notas fiscais tão verdadeiras quanto notas de R$ 3”. As acusações se dirigiam ainda ao teatro —os figurinos seriam lavados nas pias da casa, com “uso sistemático de vodca para disfarçar cheiro de suor estragando os figurinos raros e caros para depois falarem que foi na lavanderia”.
Aquela foi a primeira de cinco cartas assinadas por João do Theatro, entregues entre fevereiro e outubro de 2019. Nas seguintes —que passaram a incluir a hashtag #foraodeon— as ofensas miraram também o então secretário de Cultura, Alexandre Youssef, e o prefeito, Bruno Covas. Juntos com Carlos Gradim, são chamados de “Trio Calafrio”.
Obtidas às vésperas de o Odeon se desligar do Municipal depois de um turbulento processo, as cartas foram entregues em um momento no qual a prefeitura estudava romper o contrato de mais de R$ 550 milhões com o instituto, que valeria até 2021.
O rompimento se deu por causa de uma investigação que apontou problemas nas contas do Odeon e uso indevido de cartões corporativos, alegações que o instituto contestou. As cartas de João do Theatro motivaram a abertura, em março, de uma queixacrime do Odeon contra o homem que entregou a primeira delas, Valter Scheiba Pinto Ribas Neto. Ele é acusado de difamação, num processo que tramita no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Sua identidade foi descoberta de forma insólita. No inquérito instaurado pela polícia acerca das mensagens, duas então funcionárias do Municipal foram chamadas para depor. Uma delas, Ivani Rodrigues Umberto, à época coordenadora do acervo de figurinos, compareceu à delegacia acompanhada de Ribas Neto.
Naquele momento, o delegado notou semelhança do acompanhante com as imagens registradas pelas câmeras da Praça das Artes.
Ribas Neto confessou ter entregue a carta, mas disse desconhecer seu conteúdo e não saber quem a tinha escrito. Ele afirmou ter agido só como mensageiro de “pessoas que estavam na Câmara dos Vereadores”, segundo os autos.
Ele se diz professor universitário, mas uma busca na internet não vincula seu nome a qualquer universidade, e sim à Reval Brasil, uma empresa de comércio de alimentos da qual aparece como sócio.
Não foi possível confirmar sua identidade numa ligação telefônica. Num email, a Reval Brasil disse desconhecer Ribas Neto. Procurada, Ivani Rodrigues Umberto também não se manifestou.
O processo contra o mensageiro é o epílogo do complicado desligamento do Odeon, a organização social que administra o Municipal desde 2017 —o último dia do contrato é 30 de setembro, afirma Jimmy Keller, diretor de operações financeiras do Odeon.
Em 2018, André Sturm, então secretário da Cultura, pediu a rescisão, alegando falta de transparência nas prestações de contas do Odeon.
No começo de 2019, porém, o novo secretário, Alê Youssef, suspendeu a rescisão, mantendo a entidade no comando do teatro. Depois, instaurou um grupo de trabalho para avaliar a administração do instituto —as contas de 2018 foram reprovadas e as de 2017, aprovadas com ressalvas.
O Odeon apresentou recurso, que foi reprovado. Em janeiro deste ano, a diretora da Fundação Theatro Municipal, Maria Emília Nascimento Santos, determinou a rescisão do contrato —o instituto recorreu, mas a Secretaria de Cultura negou provimento ao pedido e o contrato foi rescindido em 18 de maio, já com Hugo Possolo como secretário.
O Odeon se defendeu em diversas ocasiões e negou irregularidades, afirmando que as acusações se devem a “divergências de entendimento” entre as partes. Das irregularidades apontadas em 2018, por exemplo, Keller diz que o instituto sempre obteve aprovação do Municipal antes de tomar alguma medida. Neste ano, acrescenta o diretor financeiro, a fundação reconheceu que nunca houve dano ao erário por parte do instituto.
Ainda não se sabe qual organização social vai gerir o Municipal após a saída do Odeon. A Secretaria Municipal de Cultura afirma que o edital para contratação deve ser publicado ainda em agosto.