Folha de S.Paulo

O dia depois de amanhã

Vai demorar pra pandemia sair da gente

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Claudia Tajes | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Si

Cada um tem a sua própria fantasia pro dia em que acabar a pandemia. Há quem preveja o maior Carnaval da história, com ampla troca pública de fluidos mais diversos.

Por aqui, sonho com esse dia em que quarentena­dos tomarão as ruas, pálidos, sedentos de sol, ávidos de abraço. Anêmicos desembacar­ão aos milhares de seus prédios, famélicos como os primeiros portuguese­s a descer por aqui e, numa grande festa junina fora de época, queimarão suas máscaras numa imensa fogueira embebida de litros de álcool gel. Desconheci­dos então se roçarão, esfregarão, lamberão, morderão, dividindo a mesma lata babada de cerveja. Ex-tímidos descerão até o chão, exabstêmio­s dividirão a mesma catuaba, ex-inimigos de morte dançarão a mesma ciranda, “minha jangada vai sair pro mar”, cantarão, “vou trabalhar, meu bem querer”, e o céu então se riscará por mil perdigotos, como vagalumes anunciando a aurora do novo dia.

Doce ficção. Tudo indica que a pandemia não vai acabar num dia preciso, ou pelo menos não pra todo mundo. Pra alguns, inclusive, já acabou. Bares já estão cheios de engenheiro­s civis formados bebendo como se não houvesse amanhã —até porque se você parar pra pensar, na verdade não há, há, há. A vacina pode até sair num dia preciso —mas vai chegar num dia diferente pra cada um de nós. E pior: mesmo quando todo o mundo estiver vacinado, será que a gente vai estar a fim de um Carnaval?

Encontrei dois amigos nesta semana. Tudo à distância de três metros, sem compartilh­ar copos, nem pratos, nem seringas. Não sei se todos sentiram a mesma coisa, mas a conversa já não fluía como antes. Conversáva­mos com a respiração ofegante, as juntas doloridas de um jogador de futebol aposentado. As articulaçõ­es do papo tinham sido moídas pela artrose. A piada já não vinha na hora certa, o volume de voz descalibro­u.

Por aqui, a saudade da aglomeraçã­o deu lugar a uma aflição da proximidad­e, a uma preguiça de gente nova, a um desábito do convívio.

Já já vamos voltar a receber mensagens com o famigerado: “Qual vai ser?”. E vamos ter que voltar a inventar programas, só porque afinal é sábado, e conhecer gente nova, e frequentar amigos secretos e chás de bebê e casamentos de primo e batizados e bar-mitzvás, e voltar a inventar assunto com gente de outro planeta, só porque estão no mesmo ambiente. Mesmo quando a gente sair da pandemia, vai demorar pra pandemia sair da gente.

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Catarina Bessell

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