Centenário lança luz sobre talento gráfico e desenhos de guerra de Scliar
Artista gaúcho, que lutou na Itália, tem obra resgatada em mostras que tratam de sua carreira ancorada no realismo
porto alegre Quando o jovem gaúcho de 24 anos foi convocado para lutar contra as tropas nazistas de Adolf Hitler, na Segunda Guerra Mundial, ele não pareceu lamentar o destino. Comunista e pintor, Carlos Scliar viu no chamado da Força Expedicionária Brasileira, a FEB, uma oportunidade para lutar por seus ideias.
Um dos nomes mais importantes da arte contemporânea no país, Scliar não deixou de pintar enquanto era artilheiro da FEB — uma força especial criada especialmente para aquela guerra e extinta depois do conflito. Os pracinhas brasileiros derrotaram os nazistas há 75 anos, na chamada batalha de Monte Castello.
Durante o combate, entre os anos de 1944 e 1945, ele trocou a variedade de cores das tintas pela praticidade do nanquim sobre papel. Os desenhos eram feitos em intervalos de sua função de cabo na central de tiros, onde analisava mapas para calcular distância e direção dos projéteis.
Neste período, Scliar se dedicou a figuras humanas e paisagens da Itália. No seu retorno ao Brasil, depois da vitória dos Aliados, as obras foram expostas no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Porto Alegre.
“Foi na guerra, em contato com a miséria que ela produz, vivendo aqueles instantes derradeiros, que banham de luz nova tudo que nos cerca, que se iniciou uma nova etapa em minha pintura. Eu era, senão um pessimista, quase um cético; me descobri então um lírico, um lírico visceralmente otimista, com uma tremenda confiança na humanidade”, disse sobre o período, em depoimento a Roberto Pontual, autor do livro “Scliar, o Real em Reflexo e Transfiguração”.
Tanto os nanquins que formariam futuramente o “Caderno de Guerra”, publicado em 1969 com textos de Rubem Braga, que foi correspondente e narrou o conflito, quanto suas demais pinturas, xilogravuras e trabalhos gráficos integram exposições que celebram os cem anos do artista.
Por causa da pandemia do novo coronavírus, as mostras são virtuais. Há exposições online em sua cidade natal, Santa Maria, organizada pela galeria Moblan com apoio do Espaço Cultural Duque, da capital gaúcha.
Também em Porto Alegre, promovida pela Coordenação de Artes Plásticas, a CAP, da prefeitura, uma exposição celebra os cem anos de Scliar.
A principal das iniciativas virtuais, porém, é do Instituto Cultural Carlos Scliar, em Cabo Frio. É possível “caminhar” pela antiga casa do artista, preservada com detalhes como o quarto e o banheiro com a formatação original deles.
“Os desenhos originais da guerra são algumas das obras mais importantes que conservamos. O papel é muito sensível e está preservado”, diz Regina Lamenza, presidente do instituto que promove a mostra.
Ao entrar no sobrado, o visitante se depara com a exposição do centenário, que preenche as paredes com obras de diferentes fases da carreira artística de Carlos Scliar. Logo à direita, pinturas têm frases curtas como “pergunte quem”, “pergunte quando” e “pergunte sempre”. Produzidas durante a ditadura militar, questionavam a repressão.
“Queriam pensar por nós, subestimando a inteligência e a capacidade do povo brasileiro”, disse Scliar em 1975, como mostra a exposição virtual. Junto à natureza-morta retratando um prato com laranjas, o artista gaúcho escreveu “pergunte às laranjas”.
Ali, há também cartazes como o do filme “Grande Otelo”, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. “Além de ele ser gravurista e pintor, era um excelente editor gráfico. Ele foi chamado pela revista Senhor para ser o editor gráfico. Foi um boom na época. Era fantástica a diagramação. Ele inovou essa revista, foi um sucesso, chamou Glauco Rodrigues”, lembra Lamenza.
Glauco, como é conhecido o também artista gaúcho, formava com Scliar o que foi chamado de Grupo de Bagé, no final da década de 1940, com Glênio Bianchetti e Danúbio Gonçalves. Os quatro ganharam há pouco uma exposição na Fundação Iberê Camargo.
Naquele período, o abstrato predominava no país. O grupo optou, então, por gravuras que fossem mais realistas, inspiradas no Taller de Gráfica Popular, fundado por Leopoldo Mendez, no México.
“É também um momento muito notável, quando surgem os clubes de gravura de Porto Alegre e Bagé. A visão de arte deles é a de que é necessário se comunicar com o povo. Por isso, a gravura, uma arte mais acessível, que pode se multiplicar, pode ser impressa e rodar”, diz Francisco Dalcol, diretor e curador do Margs, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul. O Margs mantém mais de 150 obras de Scliar em seu acervo.
Em 1952, o livro “Gravura Gaúcha” trazia um texto de apresentação de um amigo de Scliar, o escritor Jorge Amado. “As gravuras reunidas neste álbum valem como uma tomada de posição contra a decadência da arte, o cosmopolitismo, a imitação servil de uma pseudoarte, o formalismo sem conteúdo, contra uma arte desligada da vida, do homem e do futuro”, escreveu.
“Eles passam a retratar o Rio Grande do Sul rural sob o ponto de vista crítico e não laudatório. São gravuras que mostram as rudes condições da vida no campo”, diz Dalcol.
A exposição virtual da Coordenação de Artes Plásticas de Porto Alegre ganhou o nome “Os Lugares de Carlos Scliar”. A mostra virtual começa com os desenhos feitos pelo artista na Itália, enquanto ele lutava como pracinha da FEB.
“A exposição é organizada a partir das cidades onde ele esteve. Começamos com a Itália, no período da guerra. Depois em Bagé, no Rio de Janeiro, em Cabo Frio, em Ouro Preto e Porto Alegre”, afirma Adriana Boff, que ocupa o cargo de coordenadora da CAP.
Ao longo de sua carreira, Carlos Scliar chegou a ser descrito por artistas e por amigos como uma figura generosa, que até mesmo comprava quadros de pintores iniciantes como forma de incentivo.
“A casa vivia rodeada de gente, cheia de artistas que estavam começando a carreira. Nosso pai era chamado pelos artistas de tio Henrique, porque também apoiava a arte. Em Porto Alegre ou no Rio de Janeiro, era a mesma generosidade. Era generoso em todos os sentidos”, conta Rusy Scliar, irmã do gravurista.