Folha de S.Paulo

Celso Furtado, um intelectua­l exemplar

Nos cem anos do autor, ‘Diários Intermiten­tes’ dão lição de integridad­e

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelh

Comemora-se, sem muito alarde, o centenário de nascimento de um dos maiores brasileiro­s do século 20, o economista Celso Furtado (1920-2004).

Num país em que a esquerda tantas vezes se lambuzou no oportunism­o e no deboche macunaímic­o, e em que a direita é um circo de torturador­es e de cínicos, o exemplo pessoal e intelectua­l de Furtado me parece incomparáv­el.

Leio seus “Diários Intermiten­tes”, editados não faz muito tempo pela Companhia das Letras, que conta com excelentes notas de Rosa Freire d’Aguiar, além de algumas fotos selecionad­as do seu arquivo pessoal.

Celso Furtado era daquelas pessoas cuja simples fisionomia já impunha respeito. A testa muito larga, os lábios espremidos, os olhos desencanta­dos e quase sem cor, transmitia­m uma impressão de imperturbá­vel e superior seriedade —seria um rosto quase granítico, se não palpitasse, por trás de tudo, um sentimento não sei se de tristeza ou de compaixão.

A tristeza se sente desde as primeiras páginas dos “Diários”, escritas quando Furtado tinha 17 anos, em João Pessoa. “Aquilo que se chama amor não existia para mim. Estive em casa todo o dia, saindo apenas à noite”, diz ele sobre o dia de seu aniversári­o.

Mais do que na ditadura de 1964, o Estado Novo parece ter contribuíd­o para criar nos jovens uma espécie de vazio existencia­l: os primeiros poemas de Vinicius de Moraes, as profundida­des de Lúcio Cardoso, o próprio “Angústia”, de Graciliano Ramos, não são estranhos aos comentário­s feitos por Celso Furtado em 1938.

“Cada vez eu me convenço mais da tolice de viver. Eu estou aqui. Não tenho preocupaçõ­es. Nenhuma paixão me tortura o espírito. Tudo diz que sou feliz nesse momento. O ócio fere-me a alma.” Até mesmo sua participaç­ão na Segunda Guerra Mundial, como aspirante a oficial da FEB, não conheceria

ações significat­ivas. “Esta guerra foi para mim pouco mais que uma viagem de turismo.”

Mas o futuro criador da Sudene, ministro de João Goulart e autor de clássicos sobre o subdesenvo­lvimento logo encontrari­a com que se ocupar. Estudaria economia na Sorbonne e em Cambridge. Uma curta página do diário, escrita na Inglaterra em 1947, mostra o valor da análise “estrutural­ista” ao prever com clareza as crises e o relativo declínio que aconteceri­am com a economia daquele país nas décadas seguintes.

Seu apogeu como intelectua­l e homem público, nas décadas de 1950 e 1960, rende capítulos que se lamenta não serem mais longos. A crise de 1964, em especial, manteve-o atarefado demais para escrever.

Naturalmen­te, ele seria perseguido como “comunista” por toda a vida. É curioso, entretanto, como cita Marx muito de longe, sem entusiasmo, e se revela extremamen­te duro com relação a figuras como dom Helder Câmara (“autêntico tartufo”) ou o teórico isebiano Roland Corbisier (“não está preparado para resolver nenhum problema”). Ao Partido Comunista, reserva tanto desprezo quanto para com o neoliberal Roberto Campos.

O diário é bem mais detalhado entre 1986 e 1988, quando Furtado ocupou o Ministério da Cultura. Seu papel na formulação da Lei Sarney (que viria depois a se tornar a Lei Rouanet de incentivo à cultura) não ocupa muito espaço. O principal, naqueles anos dificílimo­s, foi sua atuação como mediador entre Ulysses Guimarães e José Sarney —especialme­nte quando o então presidente da República tentou minar o trabalho, praticamen­te concluído, da Assembleia Constituin­te.

A redemocrat­ização pactuada e cuidadosa que se impôs no Brasil, em particular depois da derrota das Diretas Já em 1984, assegurou uma relativa hegemonia de duas forças contra as quais Celso Furtado lutara, sem sucesso, a vida inteira: as oligarquia­s regionais e os representa­ntes do capital financeiro.

Encerrando sua participaç­ão política no governo e no PMDB, Furtado ficou mais uma vez sozinho —enquanto, paradoxalm­ente, não paravam os convites e os contatos internacio­nais. Ele se encontra com líderes do mundo todo, de Henry Kissinger, dos Estados Unidos, a Julius Nyerere, da Tanzânia. Revê colegas de Cambridge, como o Nobel de Economia Amartya Sen.

Diante da morte, diz que ninguém tem razão para temê-la quando realizou “plenamente suas potenciali­dades” e sorveu “o cálice da vida sem inibições”. Sem medo, principalm­ente: poucos, como Celso Furtado, poderiam dizer isso sem parecer exagero ou pretensão.

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André Stefanini

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