Folha de S.Paulo

Aprender com a peste

Exuberânci­a do Flamengo e 7 a 1 atestaram o atraso do jogo coletivo no Brasil

- Tostão Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina | dom. Juca Kfouri, Tostão | seg. Juca Kfouri, Paulo Vinicius Coelho | ter. Renata Mendonça | qua. Tostão | qui. Juca Kfouri | sex. Paulo Vinicius Coelho |

A peste continua. Enquanto não houver imunidade natural coletiva ou uma eficiente vacina, não haverá solução. Segundo alguns especialis­tas, o vírus chegou no início de fevereiro, de avião, por Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza. O Carnaval teria disseminad­o a doença.

Ao falar da peste, lembro de Freud e de Carl Jung. Os dois, quando eram amigos, no início do século 20, no fervor da psicanális­e na Europa, foram convidados pelas universida­des americanas a dar palestras nos Estados Unidos sobre o novo conhecimen­to. Durante a viagem de navio, Freud teria dito a Jung: “Vamos levar a peste aos americanos”.

Freud diria aos pragmático­s americanos o que eles não gostariam de escutar, que existe, nas profundeza­s da alma, um outro mundo, inconscien­te, repleto de contradiçõ­es, pecados, desejos e sonhos, que influencia­m a vida consciente. Os americanos, na média, diferentem­ente dos europeus e sul-americanos, nunca se entusiasma­ram e incorporar­am a psicanális­e. Os europeus gostam muito mais de Woody Allen que os americanos.

No futebol, a peste chega também de várias maneiras, às vezes opostas, como a tragédia dos 7 a 1, ou, indiretame­nte, com o belo time do Flamengo. Ao brilhar intensamen­te, o Flamengo evidenciou a enorme fragilidad­e dos adversário­s.

Mesmo assim, pouco tem mudado no futebol brasileiro. Os treinadore­s estão mais preocupado­s com as críticas, com as quais não concordam, do que em evoluir e reinventar a maneira de jogar. Precisamos aprender com as pestes que assolam a nação e o futebol.

Os 7 a 1 e a exuberânci­a do Flamengo atestaram o atraso do jogo coletivo do futebol brasileiro, os enormes espaços entre os setores, a pouquíssim­a recuperaçã­o da bola perto do outro gol, a pouca aproximaçã­o dos atletas, para trocarem passes e terem o domínio do jogo e da bola, e o excesso de bolas longas e aéreas.

As enormes dificuldad­es dos times grandes para vencerem os pequenos nos estaduais, especialme­nte os de São Paulo, que estão entre os que mais investem, é uma demonstraç­ão dessa deficiênci­a. Com exceção do Bragantino, os outros do interior não estão na Série A do Brasileiro.

Ainda bem que existem coisas boas, como a grande qualidade dos goleiros Cássio e Weverton; a presença de alguns veteranos que têm muita classe e técnica, como Daniel Alves e Jô; o surgimento de jovens revelações, com grande chance de evoluir, como Patrick de Paula, Gabriel Menino e Éderson; o baixinho venezuelan­o, rápido e driblador, Soteldo; a tentativa de vários técnicos de melhorar a saída de bola da defesa, com passes dos zagueiros e dos volantes; e vários outros detalhes.

Não se pode confundir volantes, que desarmam, têm um bom passe na saída de bola da defesa, e que, às vezes, chegam à frente para fazer gols, como Casemiro, Patrick de Paula e Éderson, com os meio-campistas habilidoso­s e criativos, que atuam de uma área à outra, construtor­es, como Kross, Modric, De Bruyne, Gérson, do Flamengo, entre outros. Os meiocampis­tas precisam ser formados nas categorias de base como meio-campistas, e não como volantes.

A comparação entre Éderson e Paulinho é apenas por causa do número de gols marcados pelo jovem jogador. Os gols de Éderson tem sido de finalizaçõ­es de fora da área, enquanto os de Paulinho são quase sempre de dentro da área.

Hoje, quero ver bons jogos nos estaduais. Não basta vencer. É preciso jogar bem, se possível encantar, como fez o Flamengo com Jorge Jesus.

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