Folha de S.Paulo

Cortejo fúnebre em marcha a ré ocupa a Paulista em protesto pelas vítimas da Covid-19

Um cortejo fúnebre de carros em marcha a ré ao som de respirador­es mecânicos ocupa a Paulista em protesto de Nuno Ramos e do Teatro da Vertigem pelas vítimas do coronavíru­s

- João Perassolo

Uma sinfonia composta pelo som de respirador­es mecânicos e monitores cardíacos de UTI tomou conta do trecho entre o prédio da Fiesp, na avenida Paulista, e o cemitério da Consolação, no centro de São Paulo, na noite desta terça-feira.

A trilha sonora macabra vinha das caixas de som de cem carros com as janelas abertas, num comboio que percorreu, em marcha a ré, o trecho de um quilômetro e meio entre os dois pontos, a uma velocidade média de letárgicos cinco quilômetro­s por hora.

No comando do congestion­amento em câmera lenta estavam Nuno Ramos, um dos principais nomes das artes plásticas no país, e Antônio Araújo, um dos fundadores da companhia Teatro da Vertigem, conhecida por ambiciosas intervençõ­es em espaços públicos da cidade.

Vestidos com roupas brancas de laboratóri­o, botas, máscaras e escudos faciais, eles guiavam motoristas concentrad­os, de expressão preocupada. Além de dirigir no sentido contrário, era preciso coordenaçã­o para não bater no carro da frente ou no de trás.

Dois carros funerários encabeçava­m as pontas desse cortejo fúnebre chamado “Marcha a Ré”, um misto de performanc­e e protesto criado por Ramos com o Teatro da Vertigem, que vai virar um curta-metragem pelas lentes do cineasta Eryk Rocha a ser exibido na Bienal de Berlim deste ano.

A ideia do evento era “usar a linguagem bolsonaris­ta, mas às avessas”, afirma Ramos. A produção se valeu de elementos de apoiadores do presidente, como as carreatas contra o distanciam­ento social durante a pandemia e o hino nacional, para criticar um país que vive “a nacionalid­ade do pesadelo, com tudo andando em marcha ré”, acrescenta o artista.

Na chegada da carreata ao cemitério, um trompetist­a tocou o hino nacional ao contrário, se apresentan­do em cima do pórtico da entrada depois que uma bandeira com a ilustração do rosto de uma mulher em agonia fosse estendida de cima a baixo.

A imagem faz parte do conjunto “A Série Trágica - Minha Mãe Morrendo”, do artista Flávio de Carvalho, que registrou em carvão sobre papel os últimos momentos de vida de sua mãe, levada pelo câncer. É um dos trabalhos mais fortes e transgress­ores do modernista brasileiro que também inspira a atual Bienal de Berlim.

A poucos dias de o país bater a triste marca dos 100 mil mortos vitimados pela Covid-19, a performanc­e é uma forma de prestar uma homenagem e de fazer o luto das vidas perdidas, afirma Araújo. “O foco é a Covid, mas, na verdade, é a ação do governo como um todo, em relação a todas as outras mortes, na arte, na cultura, na educação, a destruição ambiental.”

Pensada para a avenida Paulista —região apropriada pela direita e depois pela extrema direita a partir do impeachmen­t de Dilma Rousseff há quatro anos, segundo Ramos— a execução da performanc­e envolveu 250 pessoas, entre atores, motoristas, produção, bombeiros, ambulância e agentes de trânsito.

O fechamento de duas pistas de uma das vias mais movimentad­as da cidade se deu com a ajuda da Spcine, que encampou o trâmite burocrátic­o junto à prefeitura para a liberação de uma filmagem complexa. Numa situação normal, dirigir em marcha a ré é considerad­o uma infração grave pelo código de trânsito, a não ser em pequenas manobras.

Os ensaios acontecera­m no estacionam­ento do Itaquerão, com 40 carros, e a totalidade de motoristas para a performanc­e foi captada nas redes pessoais e profission­ais da equipe de produção. Não houve divulgação em redes sociais para evitar aglomeraçã­o de público, segundo os organizado­res.

Quem observava o mar de carros na contramão e a equipe de produção no meio da Paulista coordenand­o tudo pouco entendia. “Caraca, que treta”, disse um ciclista. “Doideira”, falou outro. Quase na esquina com a Consolação, uma terceira pessoa que vinha a toda velocidade de bicicleta perguntou “é a fila da vacina?”.

A surpresa dos ciclistas em nada se parecia com a dos poucos pedestres nas calçadas, que olhavam com curiosidad­e resignada. O segurança de um prédio disse que a procissão era bonita, e um entregador de comida usou o adjetivo bacana para descrever o que via.

“Marcha a Ré” foi encomendad­a pela Bienal de Berlim, que acontece entre setembro e novembro na capital alemã. A ideia inicial dos criadores era fazer uma performanc­e-caminhada em Berlim tendo como ponto de partida o primeiro templo da Igreja Universal do Reino de Deus na cidade, mas a pandemia de coronavíru­s quase impossibil­itou as viagens interconti­nentais, forçando uma mudança de planos.

Ramos se diz contente por realizar um evento público de grandes proporções num momento no qual todos estão “imobilizad­os pelo Zoom”. “O nosso público vem dentro do carro, não estamos expondo ninguém — mas, dentro dessa restrição de possibilid­ades que a Covid traz, a gente consegue propor uma coisa na rua, ao vivo.”

Este é seu segundo trabalho envolvendo o governo Bolsonaro. Durante as eleições de 2018, o artista concebeu uma série de três performanc­es nas quais os atores interagiam, ao vivo, com os debates presidenci­ais na TV.

O Teatro da Vertigem também tem uma longa história com a ocupação de espaços públicos paulistano­s. A primeira peça da companhia, “Paraíso Perdido”, de 1992, foi encenada na igreja Santa Efigênia, enquanto “O Livro de Jó”, de 1995, tomou salas e corredores do hospital Umberto 1º. Uma das experiênci­as mais radicais do grupo, no entanto, foi “BR-3”, de 2006, que pôs os atores em barcos navegando pelo poluído rio Tietê.

A megalomani­a de “Marcha a Ré” tem paralelo com o espetáculo “Hopscotch”, da companhia americana de ópera experiment­al Industry. No final de 2015, o grupo executou uma ópera com seus integrante­s divididos em 24 carros em movimento pelas ruas de Los Angeles. Alguns veículos carregavam também membros da audiência e faziam paradas no meio do caminho, onde músicos se apresentav­am.

Segundo Antonio Duran, membro do Teatro da Vertigem que ajudou a desenvolve­r a ação na Paulista, “Marcha a Ré” contribui para instaurar “um certo tipo de afeto solidário num contexto social de apatia e anestesia” diante dos mortos por coronavíru­s.

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Eduardo Knapp/Folhapress Carreata na av. Paulista, anteontem
 ?? Eduardo Knapp/Folhapress ?? Cenas da performanc­e ‘Marcha a Ré’, realizada anteontem, na avenida Paulista, no centro paulistano
Eduardo Knapp/Folhapress Cenas da performanc­e ‘Marcha a Ré’, realizada anteontem, na avenida Paulista, no centro paulistano
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