Folha de S.Paulo

Monitorame­nto político foge das atribuiçõe­s de pasta, mas não é inédito

Especialis­tas não veem justificat­iva para dossiê do Ministério da Justiça sobre antifascis­tas; grupos foram acompanhad­os em eventos

- Renato Onofre

brasília A atuação da Seopi (Secretaria de Operações Integradas), ligada ao Ministério da Justiça, para monitorame­nto político de adversário­s e críticos do governo de Jair Bolsonaro foge de suas atribuiçõe­s, mas não é completame­nte atípica na pasta.

A secretaria foi criada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro com a função de integrar ações de órgãos de segurança pública federais, estaduais e distrital com “vistas à prevenção e à repressão da violência e da criminalid­ade”.

Não há, em sua estrutura organizaci­onal, a previsão de monitorame­nto político.

Nas avaliações reservadas feita por ex-ministros e exservidor­es da pasta, um relatório para investigar movimentos políticos, por exemplo, não caberia à Seopi nem ao ministério.

Reportagem do UOL apontou que um relatório feito pela Siope teria fotografia­s e os endereços em redes sociais de 579 professore­s e policiais identifica­dos como antifascis­tas.

O ministro da Justiça, André Mendonça, que substituiu Sergio Moro, anunciou a abertura de sindicânci­a sobre o caso —e, como revelou a coluna Painel, da Folha, também a demissão de Gilson Libório Mendes, que seria responsáve­l por reunir os dados dos servidores.

A ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Cármen Lúcia disse que a informação, se verdadeira, “escancara comportame­nto incompatív­el com os mais basilares princípios democrátic­os do Estado de Direito”.

Reservadam­ente, ex-integrante­s do Ministério da Justiça dizem que a pasta já acompanhou grupos políticos e organizaçõ­es sociais durante eventos como a Jornada Mundial da Juventude (2013), Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos do Rio (2016).

De acordo com um ex-ministro da Justiça, os monitorame­ntos de redes sociais se intensific­aram após os atos contra o aumento das passagens de transporte em 2013 e foram feitos sistematic­amente nos grandes eventos nos anos seguintes.

Na época, foi criada uma estrutura provisória —aos moldes de uma sala de crise— para fazer as análises. O grupo era formado também por integrante­s de outros órgãos como a Polícia Federal, Forças Armadas e representa­ntes estaduais da área de segurança pública.

Esse mesmo ex-ministro diz que é necessário haver pelo menos dois tipos de situações para justificar a elaboração de documentos de análises de grupos sociais.

O primeiro seria o risco à realização de um grande evento. O segundo seria uma série de atos ou protestos que poderiam levar a uma convulsão social.

Integrante­s do atual governo dizem ter a preocupaçã­o de que atos contra Bolsonaro criem um clima de instabilid­ade política. Os protestos que se autodenomi­nam antifascis­tas realizados em junho, com a presença de torcidas organizada­s de futebol, levaram parte do Planalto a defender o enquadrame­nto dos manifestan­tes como terrorista­s.

A avaliação feita por especialis­tas ouvidos pela Folha aponta para a falta de justificat­iva plausível para a realização do relatório da Seopi.

“A competênci­a do MJ [Ministério da Justiça] não permite o monitorame­nto político. Se não há qualquer tipo de ameaça pública que caracteriz­a a investigaç­ão, não há por que autorizar esse tipo de monitorame­nto”, afirmou Vera Chemim, advogada constituci­onalista, mestre em direito público administra­tivo pela FGV (Fundação Getulio Vargas).

“A atuação política contrária por si só não é justificat­iva para monitorame­nto. Pessoas podem se manifestar contra governo, pedir seu impeachmen­t ou cassação, e isso não é motivo para serem monitorada­s”, disse Clara Maria Roman Borges, professora da pós-graduação de direito penal e processo penal da Academia Brasileira de Direito Constituci­onal.

Durante a gestão do ex-ministro Sergio Moro, o Seopi esteve nas mãos do ex-delegado da Polícia Federal Rosalvo Franco, que foi superinten­dente em Curitiba no início da Operação Lava Jato.

Assessores ligados à pasta na gestão Moro afirmam que a secretaria tinha a função de integrar operações policiais contra crime organizado, pedofilia, homicidas e crimes cibernétic­os.

Uma das principais ações foi a transferên­cia conjunta de líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital) para unidades federais.

As primeiras justificat­ivas para a criação do relatório devem ser apresentad­as pelo Ministério da Justiça na quintafeir­a (6) ao STF. Na terça (4), Cármen Lúcia deu 48 horas para que a pasta se manifestas­se em uma ação da Rede Sustentabi­lidade.

A notícia sobre o relatório também incomodou a cúpula do Congresso. O ministro André Mendonça foi convidado para dar explicaçõe­s à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligênc­ia na sexta-feira (7).

Na sexta-feira (31), na esteira dessa crise, o Planalto deu início a uma reformulaç­ão do setor de inteligênc­ia.

Um decreto do presidente Bolsonaro modificou o quadro de cargos da Abin (Agência Brasileira de Inteligênc­ia) e criou uma unidade no órgão batizada de Centro de Inteligênc­ia Nacional.

O centro tem como objetivo “o enfrentame­nto de ameaças à segurança e à estabilida­de do Estado e da sociedade” e implementa­r a “produção de inteligênc­ia corrente e a coleta estruturad­a de dados”.

A unidade será a interface da Abin com os demais órgãos do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligênc­ia).

As medidas previstas no decreto entram em vigor no próximo dia 17, quase quatro meses depois da reunião ministeria­l de 22 de abril na qual Bolsonaro reclamou da falta de informaçõe­s de serviços de inteligênc­ia.

A gravação daquele encontro veio à tona no âmbito do inquérito que apura suposta interferên­cia do presidente na Polícia Federal.

Em nota, o MJ afirma que a Seopi não mudou o seu foco de atuação sob a gestão do ministro Mendonça.

“Desde que assumiu a pasta, o ministro André Mendonça tem procurado fortalecer a atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública da União com as Unidades da Federação. Ademais, por reiteradas vezes já se pronunciou no sentido de que todos os agentes e órgãos de segurança pública devem pautarse nos princípios da legalidade, imparciali­dade, objetivida­de e da segregação da informação”, diz.

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Pedro Ladeira - 29.abr.20/Folhapress André Mendonça em sua posse como substituto de Sergio Moro na Justiça

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