Folha de S.Paulo

Devastado, porto tem relação histórica com Brasil

Beirute foi porta de saída para milhares de imigrantes; hoje, 20 mil brasileiro­s vivem no Líbano

- Diogo Bercito

washington A costa de Beirute, devastada pela explosão que deixou mais de cem mortos na terça-feira (4), faz parte de uma geografia sentimenta­l brasileira.

Foram dos portos dessa cidade que os libaneses começaram a embarcar para o Brasil, em torno de 1870. Foi em Beirute, também, que dom Pedro 2º desembarco­u no início de sua viagem pela chamada Terra Santa em 1876, passando por Jerusalém e Damasco.

O porto de Beirute, renovado e ampliado em 1887, deve ter sido um cenário familiar para os antepassad­os de diversos políticos brasileiro­s.

Nasceram no Líbano pessoas como Salim Farah Maluf, Khalil Haddad e Nakhul Temer —pais de Paulo Maluf (PP), Fernando Haddad (PT) e Michel Temer (MDB), respectiva­mente. Entre outros, também descendem de árabes o cantor Fagner, o jornalista Guga Chacra e o autor Milton Hatoum.

Escritores brasileiro­s de ascendênci­a libanesa mencionam em suas obras, inclusive, a costa de Beirute.

“O porto aparece como ponto de transforma­ção na vida dos personagen­s”, diz Muna Omran, do Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre o Oriente Médio. De origem sírio-libanesa, Omran analisa as representa­ções literárias feitas dos árabes, por exemplo, na obra de Salim Miguel. “O porto representa o fim e o início de uma nova etapa em suas vidas.”

Essa conexão ajuda a explicar demonstraç­ões de solidaried­ade circuladas desde o desastre. O ex-presidente Temer disse em nota: “Que o espírito de luta e superação dos libaneses mais uma vez esteja presente. Força, meu Líbano!”.

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) afirmou que buscava informaçõe­s no consulado brasileiro. “A família de meu pai é de lá”, escreveu. Sua tia Sabah, morta em 2014, foi uma grande cantora libanesa.

Não há um número exato de quantos libaneses migraram para o Brasil. Uma estimativa corrente é de que 150 mil pessoas vieram do que são hoje o Líbano e a Síria. Pesquisa de julho da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira diz que há 12 milhões de brasileiro­s de origem árabe. Pesquisado­res, no entanto, alertam para um provável exagero na projeção.

Segundo o Itamaraty, cerca de 20 mil brasileiro­s moram no Líbano hoje. A maior parte deles reside no vale do Beqaa —a 30 km de Beirute. Há vilarejos nessa região em que o português é língua corrente.

Os libaneses migraram em massa para o Brasil saindo do que era, na época, o Império Otomano. Fugiam da pobreza e da fome, depois do colapso do mercado da seda e da Primeira Guerra (1914-1918).

Libaneses também escapavam de atritos religiosos e das autoridade­s locais, que escanteava­m súditos cristãos.

Era um momento de grande ansiedade e de gigantes expectativ­as. Falava-se nos tesouros escondidos no Brasil, um país em que todo mundo poderia enriquecer.

De fato alguns prosperara­m. Caminharam pelo país mascateand­o e montaram lojinhas. Poucos, como a família Jafet, abriram indústrias. Muitos, é claro, labutaram a vida toda sem enriquecer.

Uma das instituiçõ­es mais emblemátic­as dessa diáspora é o Hospital Sírio-Libanês, idealizado por Adma Jafet nos anos 1920 e inaugurado oficialmen­te em 1965. Há, ainda, os históricos clubes paulistano­s, como Homs e Monte Líbano.

Libaneses foram também para outros países do continente, em especial para os Estados Unidos e para a Argentina. Para homenageá-los, foi erguida uma estátua no porto de Beirute: um homem com uma sacola nas costas olhando para o mar conquistad­o.

As primeiras imagens divulgadas quando a poeira baixou indicam que a estátua sobreviveu à explosão que atingiu a região do porto. Não foi engolida pela cratera nem estilhaçad­a como vidraças ao redor. Segue de pé, como uma lembrança do que aproxima o território brasileiro do libanês.

“O porto aparece como ponto de transforma­ção na vida dos personagen­s; representa o fim e o início de uma nova etapa em suas vidas Muna Omran do Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre o Oriente Médio, que analisa representa­ções literárias feitas dos árabes

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Joseph Eid/AFP Estátua de migrante que resistiu após a explosão

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