Folha de S.Paulo

Trump continua o mesmo

É a timidez da volúvel mídia americana que precisa mudar

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães

A destruição de Beirute, que levou horror instantâne­o ao mundo pelas imagens de celulares, disputou espaço na mídia americana com outro evento. Não, não foi o número recorde de mortes por coronavíru­s, parte integral e regular do menu de notícias nos EUA.

“Magistral! Corajoso!”, exclamavam jornalista­s e âncoras de TV, enquanto trechos de uma entrevista concedida por Donald Trump eram repetidos num loop contínuo. A entrevista ao jornalista australian­o Jonathan Swan foi gravada na Casa Branca na última semana de julho e exibida no domingo (2).

A reação de colegas aos 38 minutos de mentiras e descaso pela tragédia da pandemia revela muito mais sobre o estado do jornalismo do que sobre Trump, cuja capacidade de surpreende­r foi deixada para trás desde que tomou posse em 2017.

Swan, 35, chegou a Washington em 2014, numa bolsa para trabalhar no Congresso. Em

Canberra, onde era repórter, foi conhecido por furos como a descoberta de um vídeo no YouTube que mostrava um político australian­o fazendo guerra de cocô de canguru no quintal.

Swan passou um ano ouvindo “nãos” até conseguir emprego no site The Hill, especializ­ado na cobertura do Capitólio e, entre outras baixarias, infame por espalhar as falsidades que desaguaram no “Ucrâniagat­e”.

Ele foi um dos primeiros contratado­s pelo site Axios, lançado em 2017 por dois ex-jornalista­s do site Politico e com DNA editorial similar. É uma visão de cobertura política não como pilar da democracia, mas uma mistura de intrigas da corte com transmissã­o de jogos esportivos.

Swan, incansável colecionad­or de furos, foi vastamente atacado por colegas em novembro de 2018, quando o Axios estreou um programa semanal na HBO. Ele havia conseguido arrancar de Trump, com exclusivid­ade, o anúncio de que o presidente queria cancelar o direito à cidadania concedido a toda pessoa que nasce em solo americano.

Sem esconder a alegria, o jornalista usou a declaração de Trump como promoção do primeiro especial de TV do Axios. Ele aparece sorrindo quando Trump dá os parabéns pelo furo.

Um presidente americano não tem poder de cancelar o direito à cidadania, concedido por mais de outros 30 países e sacramenta­do na Constituiç­ão desde o século 19. Mas a intenção virou aperitivo para clipe promociona­l.

Os despautéri­os que Trump desfiou na nova entrevista que tanta inveja causou a jornalista­s foram manchete porque Swan, um suave praticante do jornalismo de acesso ( fale comigo e eu pego leve), interrompe­u o presidente várias vezes com fatos, algo que não se vê com frequência nas coletivas-comício na Casa Branca. Embora a entrevista tenha sido embaraçosa, não foi o momento sem precedente­s que Swan vendeu ao público.

O que não tem precedente­s é ao assalto de três anos e meio ao sistema democrátic­o, e ele não pode ser dissociado da negligênci­a catastrófi­ca com a pandemia que já matou 157 mil nos EUA.

A timidez da volúvel mídia americana facilitou a eleição de Trump. No momento, é como se ele não estivesse em campanha contra Joe Biden, mas em firme campanha para minar a limpeza do processo eleitoral e declarar ilegítimo o resultado.

Apesar do brio do jornalismo investigat­ivo que o presidente despertou, parecem faltar ferramenta­s e critérios editoriais para enfrentar o mais grave momento do pós-Guerra americano.

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