Folha de S.Paulo

Pandemia embaralha vida pessoal e profission­al e deflagra ‘crise do cuidado’

Afazeres domésticos dificultam trabalho remunerado para 64,5% das mulheres, aponta pesquisa

- Fernanda Mena

são paulo No contexto da pandemia, quando o assunto são finanças, vida profission­al e cuidados com a casa e com a família, as mulheres brasileira­s estão mais estressada­s e ansiosas que os homens, aponta pesquisa inédita do Datafolha.

Isso porque, além das crises sanitária, financeira e de trabalho, a Covid-19 embaralhou fronteiras entre vida pessoal e profission­al, deflagrand­o uma crise do cuidado.

De acordo com a pesquisa, encomendad­a pelo C6 Bank, 57% das mulheres que passaram a trabalhar em regime de home office disseram ter acumulado a maior parte dos cuidados com a casa. Entre os homens, o percentual é de 21%.

Outra pesquisa, realizada pela Gênero e Número em parceria com a Sempreviva Organizaçã­o Feminista (SOF) a partir de dados coletados com 2.641 mulheres de todo o país, apontou para uma maioria absoluta que teve aumento da demanda de preparar ou servir alimentos (80,5%), lavar louça (81%) e limpar a casa (81%).

A demanda por cuidado, no entanto, extrapola a questão doméstica. De acordo com a pesquisa, intitulada “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, 50% das mulheres passaram a apoiar ou a se responsabi­lizar pelo cuidado com outra pessoa, seja ela um familiar (80,6%), um amigo (24%) ou um vizinho (11%). Entre negras, esse percentual é de 53%, enquanto entre brancas é de 46%.

“O cuidado está no centro da dinâmica da sociedade e das famílias, e vínhamos terceiriza­ndo esse serviço”, diz Giulliana Bianconi, diretora da Gênero e Número, organizaçã­o que atua na produção e análise de dados para o debate de direitos e gênero.

“Este é um momento de reflexão sobre isso porque ficou clara a total incapacida­de das instituiçõ­es de dar suporte nesse contexto, abrindo uma crise do cuidado.”

Dentre as mulheres que exerciam atividades de cuidado com idosos, por exemplo, 72% viram a demanda aumentar ou aumentar muito depois do início da pandemia. E 77% das que já cuidavam de crianças menores de 12 anos também viram a intensidad­e dessa atividade aumentar com a pandemia.

É o caso de Andréa Silva Paiva, 44, divorciada e mãe de dois meninos, de 4 e 6 anos, ela trabalha como executiva de uma empresa da área de saúde e viu seu trabalho no escritório adentrar a casa e, com a pandemia, se intensific­ar como nunca.

“Ficava com meus filhos antes da escola, que começava às 8h, e de noite, além de finais de semana alternados. Agora é o dia inteiro. Ficou difícil pra mim, para eles e para a minha ajudante, da qual não pude abrir mão, senão meu trabalho seria inviável”, explica.

Ao acompanhar o intenso cotidiano de trabalho da mãe, as crianças colocaram sobre ela também uma pressão emocional extra, além de reforço na culpa que em geral acompanha a maternidad­e. “Muitas vezes eles pedem para eu trabalhar menos. E tem dias em que tenho de interrompe­r o trabalho para ficar um pouco com eles e, depois que dormem, retomo o que ficou para trás.”

Economicam­ente desvaloriz­ado, ou invisível, o cuidado com pessoas e com a casa é algo, em geral, incontorná­vel.

“Não podemos dizer que essas sejam atividades exclusivas das mulheres, mas, pelo histórico das relações de gênero, esse é um trabalho que recai mais sobre as mulheres”, afirma Giulliana.

“A pesquisa mostra que uma parcela expressiva das mulheres não viu uma melhor distribuiç­ão das tarefas de cuidado desempenha­das por elas.”

Segundo dados de 2019 do IBGE, mulheres dedicavam 18,5 horas semanais, em média, aos afazeres domésticos e aos cuidados com as pessoas, ou 80% mais tempo do que as 10,3 horas semanais médias dos homens.

Durante a pandemia, 64% das entrevista­das indicaram que a distribuiç­ão das tarefas de cuidados com a casa e com pessoas permaneceu igual, 23% dizem que a participaç­ão de outras pessoas nessas atividades diminuiu e apenas 13% aponta que aumentou.

“A pandemia agrava essa desigualda­de de condição, algo que tende a se aprofundar a médio prazo já que o isolamento está se estendendo para muito mais do que os dois meses inicialmen­te previstos”, destaca a diretora.

Para 64,5% das entrevista­das, a responsabi­lidade com o trabalho doméstico e de cuidado dificulta a realização do trabalho remunerado, e 40% afirmam que a pandemia e o distanciam­ento social colocaram o sustento da casa em risco.

A pesquisa apontou que 18% das mulheres haviam perdido o emprego desde a chegada do coronavíru­s ao Brasil, enquanto, entre homens, o percentual foi de 11%. A pesquisa Gênero e Número/SOF encontrou percentual semelhante ao olhar para o desemprego gerado pela pandemia apenas no universo feminino: 15%.

Entre as mulheres que dizem “estar desemprega­da”, 58,5% são negras, e 39%, brancas.

Por isso, o levantamen­to do Datafolha aponta que, enquanto 49% dos homens estão preocupado­s com a vida profission­al, entre mulheres esse percentual é de 59%.

Para Giulliana, esse contexto de estresse das mulheres que vivenciam um aumento das demandas de cuidados e de pressão do trabalho remunerado tende a ser resolvido entre as próprias mulheres, quando deveria gerar um debate estruturan­te sobre a questão do cuidado.

“Com isso, mulheres pobres e negras, mais precarizad­as, acabam pressionad­as a retomar suas atividades para render outras mulheres em seus afazeres.”

“Ficava com meus filhos antes da escola, que começava às 8h, e de noite, além de finais de semana alternados. Agora é o dia inteiro. Ficou difícil pra mim, pra eles e para a minha ajudante, da qual não pude abrir mão, senão meu trabalho seria inviável Andréa Silva Paiva divorciada e mãe de dois meninos

 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? Andréa Silva Paiva, executiva divorciada da área de saúde sobrecarre­gada com home office e cuidados da casa, com seus filhos, de 4 e 6 anos
Karime Xavier/Folhapress Andréa Silva Paiva, executiva divorciada da área de saúde sobrecarre­gada com home office e cuidados da casa, com seus filhos, de 4 e 6 anos
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil