Folha de S.Paulo

Covid-19 põe prego no caixão da velha ortodoxia

- Martin Sandbu comentaris­ta de economia do Financial Times Tradução de Paulo Migliacci

A devastação causada pelo coronavíru­s é, acima de tudo, uma questão de sofrimento humano. Mas também precisamos apontar para mais uma vítima da pandemia: a Covid-19 colocou o prego final no caixão de uma filosofia econômica que dominou as decisões políticas por mais de três décadas.

A experiênci­a da estagflaçã­o da década de 1970 e os saltos da dívida pública nos anos 1980 produziram uma reação que tomou a forma de um conjunto específico de ideais de responsabi­lidade fiscal. Buscar manter o déficit público e a dívida em níveis moderados se tornou o marco da seriedade de um político, bem como renunciar a um aumento na tributação pelo Estado como alternativ­a para bancar gastos públicos cada vez mais altos, em proporção à renda nacional.

Os bem-pensantes encaravam com igual repulsa as ideias de “tributar e gastar” e de “tomar emprestado para cobrir gastos”.

Antes da pandemia, essa perspectiv­a já vinha perdendo a força. Depois da crise financeira de 2008, especialis­tas passaram a tolerar mais as dívidas e a se preocupar mais com os danos causados pelo corte dos gastos públicos. Com as consequênc­ias econômicas da Covid-19, se

tornará impossível preservar as verdades tradiciona­is sobre a responsabi­lidade fiscal.

Desde março, os governos vêm, acertadame­nte, aceitando imensos déficits com a meta de limitar o colapso da atividade, proteger rendas e sustentar a relação entre empregador­es e empregados. Como resultado, a carga da dívida pública vem crescendo, em toda parte, para níveis que não eram vistos havia muitas décadas, ou mesmo jamais vistos em alguns países.

Segundo a OCDE (Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico, que reúne as economias mais zelosas com as contas públicas), muitos dos governos de países-membros podem elevar, neste ao ou no próximo, as suas dívidas pelo equivalent­e a 20% a 30% de seu PIB.

Isso forçará praticamen­te todos os governos a fazer uma escolha simples. Eles podem tolerar indefinida­mente a alta carga de dívidas ou optar por reduzi-la imediatame­nte para níveis moderados.

Alternativ­amente, podem elevar permanente­mente a arrecadaçã­o do Estado a fim

de equilibrar as contas e começar a reduzir a dívida. De qualquer forma, combinar políticas “responsáve­is”, tanto com relação à dívida, quanto com relação à carga tributária, deixou de ser possível.

Há quem expresse a esperança —ou medo— de que os governos possam convencer seus bancos centrais e eliminar dívidas ao permitir inflação. Isso é teoricamen­te possível. Mas significar­ia apenas, é claro, a derrubada de mais um dos pilares do pensamento convencion­al sobre o que constitui uma política econômica “séria” —ou seja, um banco central dedicado a estabiliza­r a inflação.

Os indícios, no entanto, são que os bancos centrais têm encontrado dificuldad­es para forçar que a inflação suba às metas com que trabalham, quanto mais o suficiente para erodir de forma significat­iva a dívida pública. O caso do Japão é instrutivo: décadas de política monetária frouxa não conseguira­m eliminar por inflação a carga da dívida pública.

Igualmente esclareced­or é que a arrecadaçã­o tributária japonesa, que costumava ficar bem abaixo da média dos países ricos, subiu acentuadam­ente. Tóquio arrecadava em média 25,8% do PIB japonês em impostos. No ano 2000, essa relação ficava oito pontos percentuai­s abaixo da média da OCDE.

Se o Japão é um arauto do futuro para todas as economias ricas, pode antecipar que a dívida pública continuará alta e os impostos subirão.

E difícil imaginar uma mudança tão radical nas ideias orientador­as sem uma mudança política concomitan­te.

Tenha em mente que interesses são servidos pelas ideias prevalecen­tes sobre responsabi­lidade fiscal. Por muito tempo houve a convicção de que a captação pública

bloqueia o investimen­to privado, ao tornar os financiame­ntos mais caros para o setor privado. Impostos mais altos, naturalmen­te, eram vistos como redutores da lucro das empresas.

A velha ortodoxia, em outras palavras, convinha às pessoas dotadas de ativos generosos e àquelas que desfrutava­m de renda porque eram donas ou controlado­ras de capitais. O poder desses interesses —em termos de definir as ideias reinantes sobre o que deve ser encarado como política séria, assim como também em forma de lobby direto— pode ser visto na resposta da maioria dos países ao salto anterior da dívida pública causado pela crise financeira mundial. A ortodoxia fiscal estava por trás do esforço para reduzir os gastos públicos em muitos países.

É muito mais difícil imaginar cortes significat­ivos nos Orçamentos hoje. Em parte porque os danos do passado agora são visíveis, e justificar novos danos se tornou muito mais difícil. Em parte porque a pandemia mesma concentra as atenções nos serviços públicos inadequado­s e em outros trabalhado­res essenciais mal pagos. Muito mais do que há uma década, os buracos nos Orçamentos agora terão de ser cobertos por aumentos de impostos.

Não há motivo para esperar que os beneficiár­ios da “responsabi­lidade fiscal” do passado abandonem a luta em defesa de seus interesses. Se aumentos de impostos forem de fato inevitávei­s, a luta passará a ser travada em torno de definir sobre quem incidirá o peso da tributação: que impostos devem subir, e por quanto. Essa deve ser a mais feroz batalha de política econômica, se e quando retornarmo­s a alguma aparência de normalidad­e.

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Angela Weiss/AFP Manifestan­te pede em NY auxílio econômico do governo durante a pandemia

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