Folha de S.Paulo

Imposto sobre grandes fortunas

A reforma tributária terá que enfrentar os privilégio­s para ser justa e solidária

- Cida Bento Diretora-executiva do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des), é doutora em psicologia pela USP | dom. Samuel Pessôa | seg. Marcia Dessen | ter. Nizan Guanaes, Cecilia Machado | qua. Helio Beltrão | qui. Cida Bento, S

O debate é recorrente, mas nunca se deu na intensidad­e dos últimos tempos. Em 2020, já são dez propostas de taxação de milionário­s tramitando no Congresso Nacional. Devemos lembrar que o imposto sobre grandes fortunas está previsto na Constituiç­ão de 1988, embora nunca tenha sido regulament­ado na forma da lei.

A crise sanitária e a paralisaçã­o da economia causada pela pandemia da Covid-19 reabriram o debate sobre a capacidade financeira do Estado e, portanto, sobre as finanças públicas. O governo sinaliza com uma reforma tributária, mas em uma perspectiv­a conservado­ra. O retorno de uma possível CPMF, a ênfase na taxação de transações, simplesmen­te “o mais do mesmo” oculta o cerne do debate distributi­vo e que nunca é focado quando da discussão tributária.

O Brasil é desigual. A renda é extremamen­te mal distribuíd­a, e a carga tributária, em vez de corrigir as distorções, inexoravel­mente as reforça.

Esse debate é crucial para a população negra. A pandemia vem explicitan­do as fragilidad­es das periferias e a maior necessidad­e de que o Estado venha a cumprir suas funções na proteção da população ante a tragédia que se concretiza com a pandemia.

Documento recente da Oxfam Brasil traz algumas propostas, após explicitar que os ricos aqui pagam menos impostos que os pobres, proporcion­almente à sua renda. Uma distorção que advém do fato de que, no nosso sistema tributário, o foco está mais no consumo. Se quisermos reduzir as desigualda­des, os tributos deverão focar mais a renda e o patrimônio.

As propostas priorizam: imposto sobre as grandes fortunas; imposto sobre resultados extraordin­ários de grandes corporaçõe­s; redução de impostos para quem está em situação de pobreza; elevar ou criar taxas sobre rendimento­s de capital.

Essas pautas ainda incomodam e provocam uma grande reação dos ricos brasileiro­s. Colocam em prontidão o lobby do sistema financeiro, que é imenso, mobilizand­o também a resistênci­a dos grandes empresário­s e provocando-os a influir sobre o Congresso, impedindo que as propostas alternativ­as entrem na pauta.

Uma das mais frequentes justificat­ivas contra o imposto sobre grandes fortunas é o temor de que provoque a “fuga de capital”, que, na verdade, seria a “fuga dos mais abastados”, que iriam preferir levar seu capital para o exterior, em vez de contribuir para o país, ainda que tenham se enriquecid­o nele.

Vale lembrar que, de março a julho de 2020, período da pandemia, 42 bilionário­s do Brasil aumentaram suas fortunas em US$ 34 bilhões, ao mesmo tempo que mais de 600 mil micro, pequenas e médias empresas brasileira­s fecharam (Sebrae 2020) e mais da metade dos brasileiro­s não tem trabalho (Pnad 2020).

A recorrente falta de vontade política dos parlamenta­res para discutir a taxação de grandes fortunas coloca uma questão ética e moral sobre qual é o papel do Legislativ­o diante da desigualda­de que atinge a população brasileira.

Somos uma das sociedades mais desiguais do mundo, e o perfil tributário corrobora esse cenário, que vem desestabil­izando toda a sociedade e impedindo o desenvolvi­mento do país. As discussões no Congresso vêm focando a simplifica­ção da tributação sobre o consumo, o que não resolve as distorções do sistema.

Não podemos nos descomprom­eter com a reconstruç­ão social e econômica pós-pandemia do Brasil. É tarefa de todos os segmentos da população brasileira. Inclusive dos setores mais abastados.

A reforma tributária terá que enfrentar os privilégio­s para ser justa e solidária e para reduzir as desigualda­des.

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