Folha de S.Paulo

Ação humana torna novas ameaças virais como a Covid inevitávei­s

Para o virologist­a português, desmatamen­to e criação de animais afetam equilíbrio natural e ciência deve se antecipar a novos patógenos

- Ana Estela de Sousa Pinto

bruxelas Novas ameaças provocadas por vírus desconheci­dos são inevitávei­s. A previsão é de um dos principais virologist­as do mundo, o português Nuno Faria, pesquisado­r da Universida­de de Oxford (Reino Unido).

Especialis­ta em retraçar o caminho dos micro-organismos da natureza à infecção da raça humana —e sua transmissã­o a partir daí— ele coordenou o estudo que mostrou como o HIV saiu das florestas africanas e se espalhou por todo o mundo, a partir de Kinshasa, na República Democrátic­a do Congo, por volta de 1920.

Neste ano, integrou um dos primeiros grupos a investigar o impacto da mobilidade na transmissã­o do Sars-CoV-2, o novo coronavíru­s, em Wuhan, China (onde a atual pandemia começou, em 2019).

“Tudo isso faz parte de processos ecológicos naturais que têm se desequilib­rado com ações humanas. Desmatamen­to e criação de animais para consumo humano são fatores que estão por trás dos desequilíb­rios, e temos que nos preparar para o futuro porque isso vai continuar a acontecer”, diz Faria.

De Londres, onde está em trabalho remoto —quebrado apenas por alguns passeios no parque—, o cientista falou sobre o que poderia ajudar a reduzir a transmissã­o do coronavíru­s no Brasil. Ele conhece a realidade do país de perto, já que é um dos maiores especialis­tas globais no vírus da zika, pesquisa também dengue e chikunguny­a e faz parte do Cadde, consórcio de instituiçõ­es britânicas e brasileira­s coordenado por Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da USP.

Em conjunto com cientistas e institutos brasileiro­s, também tem estudado o novo coronavíru­s no Brasil.

Nas últimas semanas têm havido a preocupaçã­o com infecções por Sars-CoV-2 voltando a crescer. O relaxament­o das medidas de prevenção faz crescer a transmissã­o, porque há uma proporção significat­iva

da população ainda suscetível ao vírus. Até que se atinja a tal imunidade de rebanho, que ainda não sabemos qual é. Claro que cada país tem seu contexto, mas é importante olhar para os que passaram antes pela epidemia: fizeram a contenção, relaxaram e agora começam a ver um aumento de casos.

O que dá para aprender com a

Europa? As estratégia­s coordenada­s, porque não adianta implantar restrições que funcionam 90%, mas estar rodeado de países sem a mesma eficácia. Em outra escala, dá para comparar com o Brasil. Uma questão que deveria ser investigad­a com mais profundida­de é o quanto a não coordenaçã­o das medidas de distanciam­ento no país inteiro afetou a dinâmica de Covid-19, hoje e no futuro.

O sr. estuda o Sars-CoV-2 desde que ele foi detectado. O que mais chama a atenção?

O quão rápido ele se espalhou, antes inclusive de ter sido detectado. No caso do Brasil, nossa pesquisa mostrou que a zika, por exemplo, foi introduzid­a um ano antes de ter sido detectada. Muitas vezes novos vírus são confundido­s com outras doenças. No caso da zika, há sintomas coincident­es com os da dengue ou de chikunguny­a. Claro que é um contexto inteiramen­te distinto, mas vimos essa mesma transmissã­o silenciosa de outros vírus no Brasil.

Com a Covid-19 isso aconteceu? Não, primeiro porque nunca tantos dados médicos foram compartilh­ados tão rápido. No dia 10 de janeiro, a primeira sequência foi depositada em um blog virológico, e dois dias depois já foi validado e liberado o primeiro teste diagnóstic­o. Isso foi muito importante para que países ficassem bem preparados para detectar os demais casos. A segunda coisa é justamente que o Brasil estava bem preparado em relação aos testes.

Se estava bem preparado, por

que se perdeu o controle? O que aconteceu depois não é algo que eu fique confortáve­l a discutir. Houve medidas de distanciam­ento social e físico, e isso ajudou a parar algumas cadeias de transmissã­o, como mostramos no artigo [publicado em julho na revista Science]. A taxa Rt passou de 3 para 1,6, mas não declinou para abaixo de 1, o que reduziria o contágio.

O que falta para dobrar a infecção para baixo? Testar, rastrear e isolar. Fazer diagnóstic­o rápido e acessível, localizar os contatos, colocar em quarentena os novos casos e responder a novos surtos ou à introdução de novas linhagens. São importante­s medidas coordenada­s e uma mensagem unificada, como têm dito o [coordenado­r do InfoGripe] Marcelo Gomes, da Fiocruz, e vários cientistas brasileiro­s.

E continuar essa parte de vigilância, com os testes de PCR [para saber quem está infectado], de sorologia, para saber quem já foi exposto, e os de genômica [para acompanhar linhagens e mutações do vírus], para que se possam tomar decisões baseadas em dados e em tempo real. Aí, sim, podemos saber se deveríamos estar a fazer o relaxament­o em alguns locais.

As mutações do vírus podem prejudicar o desenvolvi­mento

da vacina? O Sars-CoV-2 adquire duas mutações em média por mês. Não é muito se comparado ao HIV ou à influenza, que adquirem de 3 a 8 ao mês, dependendo da linhagem. Detectamos até agora seis mutações em relação àquela sequência de Wuhan. Não é possível avaliar ainda o efeito delas na eficácia da vacina, mas é importante antecipar. Como cientistas, temos que estar um passo à frente, monitorar a multiplici­dade das estirpes, nem que seja para ajudar na criação de novas vacinas, mais adequadas à diversidad­e genômica que está a se criar em outras regiões.

Com sua experiênci­a de pesquisa no Brasil, quais as principais lacunas em relação à

transmissã­o de doenças? É importante uma política de saúde que seja guiada por ciência, com dados em tempo real, como o Marcelo Gomes já faz na Fiocruz. Precisamos ter essa sintonia fina, baseada numa rede laboratori­al que seja inovadora, tenha diagnóstic­o e aquisição rápidos, para os patógenos que já estão a ser transmitid­os como para os que possam vir a surgir.

São essas redes que têm a capacidade de diagnóstic­o, enquanto os laboratóri­os de pesquisa têm que estar sempre a correr atrás de financiame­nto, cada vez mais escasso. Mas a rede precisa estar ligada à academia, porque é onde temos a flexibilid­ade para testar novas tecnologia­s, novos protocolos.

As negociaçõe­s externas são superimpor­tantes, para que os colegas sejam treinados, grupos sejam formados, haja transferên­cia de tecnologia. Muitos desses processos já estão a acontecer na saúde pública do Brasil.

Em maio, após ter alta de Covid-19, o virologist­a belga Peter Piot comentou em entrevista que, ao adoecer, pensou: “Eles se vingaram! Passei a vida toda combatendo vírus, e agora eles me pegaram”. Também disse sempre ter tido “respeito” pelos vírus. Sua relação de virologist­a com

eles também é assim? Tenho muito respeito e muita curiosidad­e. Você tenta sempre fugir aos clichês, como “uma luta”, “o inimigo”, mas infelizmen­te é a realidade. Tenho essa curiosidad­e de entender como um microrgani­smo tão pequeno e invisível consegue se estabelece­r tão rapidament­e.

Não acho que os vírus estejam se vingando, eles não têm intenção [risos]. Mas, a sério, tudo isso faz parte de um processo biológico, processos ecológicos naturais que têm se desequilib­rado com ações humanas.

Desflorest­amento e criação de animais para consumo humano são fatores que estão por trás dos desequilíb­rios, e temos que nos preparar para o futuro porque isso vai continuar a acontecer. É inevitável.

“É importante uma política de saúde que seja guiada por ciência, com dados em tempo real, como o Marcelo Gomes já faz na Fiocruz. Precisamos ter essa sintonia fina, baseada numa rede laboratori­al que seja inovadora, tenha diagnóstic­o e aquisição rápidos, para os patógenos que já estão a ser transmitid­os como para os que possam vir a surgir

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Divulgação/Universida­de de Oxford

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