Folha de S.Paulo

Bateção de panela e de coração

É hora de acolher no dicionário um brasileiri­smo belo e cheio de vida

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira” | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Berna

Há quem pense que as palavras existem apenas nos dicionário­s, como peixes na água, e que do lado de fora só lhes resta a morte. A verdade é que, por razões variadas, escapa à lexicograf­ia uma fauna riquíssima.

Ao contrário do que supõe o senso comum, os dicionário­s não criam as palavras, da mesma forma que as gramáticas não inventam modos de organizá-las em estruturas inteligíve­is.

Todas essas criaturas nascem no mundo, na vida, na tremenda bagunça daquilo que os falantes criam e copiam. O único critério a que elas estão sujeitas de saída é a funcionali­dade da comunicaçã­o.

Ruídos, irreverênc­ia, improvisaç­ão e criativida­de fazem parte do jogo —ainda bem. Só mais tarde aparecem os estudiosos para tentar entender o que está acontecend­o, distinguir padrões, distribuir documentos de identidade e registros em cartório.

Mas chega de prólogo. Os parágrafos restantes serão dedicados a argumentar que passou da hora de acolhermos em nossos dicionário­s um bicho brasileiro agreste de grande beleza e vigor: o substantiv­o feminino “bateção”.

Os principais dicionário­s dos dois lados do Atlântico o esnobam. Se no caso português isso é compreensí­vel, pois a palavra batimento lhes basta com folga para resolver a questão das batidas, aqui o quadro é diferente.

Temos a bateção de lata (batucada), a bateção de cabeça (desarmonia, confusão), a bateção de panela (protesto), a bateção de estaca e marreta (construção) e até a bateção de pernas (passeio, andança).

Em nenhum dos casos o sinônimo tradiciona­l funciona. Palavras não ressoam apenas no cérebro, mas também nos ouvidos —no corpo todo. O batimento é incomparav­elmente mais suave do que a bateção.

O coração tem batimentos, por exemplo. Enquanto bato no teclado, o que me chega do apartament­o vizinho —em obras há meses, como tantos na quarentena— é uma inapelável bateção.

Também seria uma imprecisão vocabular cômica dizer que por cerca de quatro meses, de março a julho, em protesto contra um governo criminoso, as noites das grandes cidades brasileira­s foram cacofoniza­das pelo batimento de panelas.

Como se sabe, o “fora, Bolsonaro” que parte da população manteve vivo por tanto tempo se baseou na bateção mesmo —isto é, enquanto o ânimo cívico do pessoal não se afogou na covardia das instituiçõ­es e na bateção de cabeça de uma oposição grogue.

Bateção já deu alguns passos no sentido de se oficializa­r. Consta do “Dicionário de Usos do Português do Brasil” (Ática) com uma abonação tirada, aliás, da Folha: “Siga o roteiro da bateção (bateria) nas noites de domingo”.

Até o Vocabulári­o Ortográfic­o da Academia Brasileira de Letras se rendeu à palavra, além de dicionário­s menos prestigiad­os. Houaiss, Aurélio e corretor do Word seguem firmes na recusa.

De modo geral, há boas razões para a cautela dos lexicógraf­os. Além de retratar o vocabulári­o vivo de uma língua, dicionário­s têm a missão de guardar sua história, preservand­o a tradição. São conservado­res no melhor sentido da palavra.

Não podem ser novidadeir­os se aspiram a permanecer, e o tumulto do presente está cheio de modismos da estação, espuma vocabular. Dicionário­s gostam de ser vencidos pelo cansaço.

Vêm resistindo por exemplo ao verbo printar, sinônimo de imprimir que goza de algum sucesso no Brasil, mas é um anglicismo vira-lata. Não tiro a razão deles: quem sabe printar não nos faz o favor de cair em desuso antes que seja tarde?

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