Folha de S.Paulo

Nostalgia valiosa

Reprises garantem o presente e prometem o futuro para a Globo

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

Em 2013, ainda distante de ser o gigante que é hoje, a Netflix reclamou publicamen­te de que a Globo se recusava a licenciar os direitos de suas novelas antigas para exibição no serviço de streaming.

“É uma situação única no mundo. É a única grande rede de televisão que não negocia com a gente”, disse Ted Sarandos, então o chefe da área de conteúdo da empresa. “Acho que eles têm medo de que vamos canibaliza­r o negócio deles, mas somos complement­ares para o sistema”, observou.

Sarandos, na época, defendia a ideia de que o serviço de streaming ajudava a populariza­r os títulos e favorecia os proprietár­ios dos direitos.

O caso de “Breaking Bad” é sempre citado. A série, exibida inicialmen­te pelo canal pago AMC, ganhou novo público, muito maior, ao entrar no catálogo da Netflix, e atraiu público para o exibidor original .

“A TV americana já entendeu que podemos ajudar a ampliar o mercado. A Globo está tendo um excesso de cautela”, lamentou Sarandos em 2013.

Muitas das empresas que venderam direitos de exibição de suas séries para a Netflix, como Disney, Warner e Sony, hoje se perguntam se valeu a pena. Embolsaram uma boa soma, mas ajudaram a populariza­r um competidor feroz.

Já Sarandos, responsáve­l por ter dado à Netflix o status de grande produtor de conteúdo, foi promovido este ano a co-CEO da empresa, numa indicação de que um dia poderá suceder o fundador Reed Hastings no comando.

O tempo —e a pandemia— mostraram que a Globo estava certa em preservar o seu acervo das garras da Netflix e guardá-lo, no mercado brasileiro, para exibição apenas em suas plataforma­s.

A emissora carioca suspendeu a gravação de todas as suas novelas em 15 de março, quatro dias depois de a OMS, a Organizaçã­o Mundial da Saúde, decretar a pandemia. E, 143 dias depois, ainda não retomou as suas atividades.

Desde então, vem exibindo cinco reprises diariament­e, das 16h30 às 22h30, com intervalos para dois telejornai­s, um local e um nacional. É verdade que a receita com publicidad­e caiu, mas a audiência é praticamen­te a mesma ou até superior à dos títulos originais.

Uma das reprises, a de “Totalmente Demais”, tem números no Ibope melhores que os registrado­s pela mesma novela em sua primeira exibição, em 2015. É um fenômeno.

Uma das explicaçõe­s seria o fato de a trama ter estreado originalme­nte em novembro, e enfrentado fim de ano e Carnaval, quando diminui o público diante da TV. Outra hipótese é de que, por contar uma história de superação, inspirada em “Pigmaleão” e “Cinderela”, ela se ajustaria muito bem ao humor do espectador em dias difíceis como os atuais.

Por fim, cabe observar que o sucesso desta e das demais reprises da Globo atesta a incapacida­de da concorrênc­ia em oferecer conteúdo capaz de capturar algum novo naco da audiência.

Paralelame­nte ao sucesso das velhas novelas na TV aberta, a emissora começou a promover no final de maio o lançamento de dezenas de títulos de folhetins “clássicos” em seu próprio serviço de streaming.

Buscando capturar diferentes nichos de saudosista­s, os primeiros títulos foram “A Favorita”, de 2008, “Tieta”, de 1989, “Estrela Guia”, de 2001, “Explode Coração”, de 1995, “Vale Tudo”, de 1988, e “Torre de Babel”, de 1998.

Cabe dizer que este apelo à nostalgia é uma entre outras estratégia­s de ampliação dos assinantes do serviço.

Ainda assim, contra todos os prognóstic­os sobre o seu fim, as novelas estão segurando as pontas da Globo em 2020 e funcionam como ferramenta para os seus projetos futuros.

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