Folha de S.Paulo

Estamos entre os mais imorais

Ideia de que moral depende da fé prospera em países menos desenvolvi­dos

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus) | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutin

Já sabia que estávamos quase capitanean­do a competição das infecções e das mortes pela pandemia de Covid-19.

Aprendi que estamos também quase capitanean­do a competição dos países mais imorais do mundo.

O Pew Research Center acaba de publicar uma pesquisa em que indivíduos de 34 países, geográfica e culturalme­nte diversos, respondera­m à pergunta: “É preciso ser religioso para ter moralidade?”.

A pesquisa, apresentad­a na revista Piauí, está na íntegra no site do Pew.

A pergunta dirigida aos entrevista­dos não mede a religiosid­ade (nesse caso, seria “quão importante é Deus na sua vida?”), mas o caráter exclusivis­ta e missionári­o da fé. Se você acha que não há moralidade fora da religião (a sua, claro), acredita que não há pessoas de bem fora de sua fé e que converter os “infiéis” é seu dever.

Defino a boçalidade como a carateríst­ica de quem quer ou precisa impor aos outros a sua maneira de se reprimir. O boçal reprime nos outros o que não consegue reprimir nele mesmo.

Com isso, o Pew nos apresenta a primeira grande pesquisa sobre a boçalidade no mundo.

E descobrimo­s que a ideia de que só há moralidade graças à religião prospera nos lugares de menor desenvolvi­mento econômico e cultural —entendendo por “desenvolvi­mento” cultural a proximidad­e com as ideias da modernidad­e ocidental.

Os países mais convencido­s de que não há moral sem religião são a Indonésia e as Filipinas (um terrifican­te 96%). Os menos convencido­s são a Suécia (9%) e outros europeus —Espanha e Itália, berços do catolicism­o, ficam em 23% e 30%; a França, grande pátria da modernidad­e, está com só 15% de pensamento boçal. Os Estados Unidos ficam divididos: 54% respondem que é possível sermos morais sem religião, e 44% pensam o contrário.

Uma observação: no fundo, a pesquisa quer saber se, para o entrevista­do, a regra moral está nele ou fora dele — no caso, numa palavra ou numa tradição que, de repente, seriam “sagradas”. A pergunta da pesquisa poderia ser realizada sem referência religiosa: você acha que é possível ser moral sem obedecer aos preceitos do livro vermelho de Mao?

A modernidad­e recusa a ideia de que os valores morais estão fora da gente — numa escrita sagrada ou nas palavras do camarada Stálin, do pastor, do padre, do papa ou do PCC, tanto faz. A modernidad­e é contra a elevação dos braços para convidar o rebanho a adorar, e pouco importa que a gente levante uma hóstia, uma Bíblia ou uma caixa de cloroquina —para a modernidad­e, o gesto de levantar os braços pedindo adoração é imoral em si.

Para a modernidad­e, a fonte da moralidade está na gente. Ela não se mede na conformida­de a mandamento­s externos. Ela é uma responsabi­lidade de foro íntimo.

Ao longo dos últimos 250 anos, tentamos nos acostumar com essa responsabi­lidade —ou seja, nos acostumar com a liberdade moderna. Não é fácil. Mas uma coisa é certa: assumir essa responsabi­lidade é o fundamento do que é moral para nós. Inversamen­te,

procurar o certo e o errado na conformida­de com prescriçõe­s (divinas ou terrenas, tanto faz), isso é sempre o mais imoral dos atos.

Então, qual é o lugar do Brasil “moderno” na pesquisa? Já sabíamos: a modernizaç­ão, no Brasil, é sempre apenas uma mão apressada de tinta, sem nem sequer massa corrida. O Brasil está com a África do Sul, com 84% que pensam que a religião é a condição da moralidade, logo atrás da Nigéria e do Quênia, a léguas da modernidad­e. Estamos, em suma, do ponto de vista da modernidad­e, entre os países mais imorais do mundo.

Em 1939, Jean Rohmer publicava “La Finalité Morale chez les Théologien­s, de Saint Augustin a Duns Scott” (a finalidade moral nos teólogos, de santo Agostinho a Duns Scott). Ele queria entender de onde tinha surgido, no século 18, a ideia moderna de que a falha moral não é a mesma coisa que o pecado, ou seja, que a religião não é o fundamento necessário da moralidade.

Rohmer mostra magistralm­ente que a própria ideia de um fundamento possível da moral na subjetivid­ade humana, sem referência a Deus, atravessa toda a filosofia medieval.

De fato, a moralidade moderna deve muito a San Bonaventur­a e a Duns Scott, por exemplo. O cristianis­mo é assim: pode ser boçal ou então ter uma tremenda carga de liberdade. Lembrando: Adão e Eva preferiram se tornar mortais a deixar a Deus a responsabi­lidade de saber o que é o bem e o que é o mal.

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Luciano Salles

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