Folha de S.Paulo

Estreia de ‘Mulan’ direto no streaming pode arrasar as salas de cinema

Com lançamento de ‘Mulan’ direto no streaming e transforma­ções aceleradas pela pandemia, experiênci­a do cinema tal como o conhecemos pode mudar para sempre

- Leonardo Sanchez

são paulo Desde a eclosão da atual pandemia de coronavíru­s, o mundo cinematogr­áfico foi chacoalhad­o não só pelos impactos econômicos da doença, mas também por uma série de adaptações e anúncios que parecem medidas de exceção, mas que podem apontar para transforma­ções profundas na maneira como consumimos filmes.

Blockbuste­rs indo direto para o streaming, filmes nacionais feitos com dinheiro público pulando as telonas e encurtamen­to das janelas de exibição, isto é, o intervalo entre a estreia de um filme no cinema e sua ida para outras plataforma­s. Essas são questões que estão no dia a dia do setor desde o primeiro semestre.

Adotadas como formas de burlar as restrições da Covid-19, elas tocam em pontos sensíveis da relação entre produtoras, distribuid­oras e exibidores. O trio vive um casamento conturbado e de difícil equilíbrio, e o desgaste só foi ampliado nos últimos meses.

Essa crise matrimonia­l deve se agravar ainda mais neste mês, quando a versão liveaction do clássico animado “Mulan” estreia direto no streaming em diversos território­s importante­s, como o americano —ainda não há notícias sobre lançamento no Brasil.

A releitura da animação de 1998 era uma das grandes apostas do ano. Com o adiamento de sua estreia no início da pandemia, se tornou uma das esperanças para encabeçar a eventual reabertura dos cinemas, ao lado de “Tenet” e “Os Novos Mutantes”, que há pouco chegaram a vários território­s — o segundo já desapontou nas bilheteria­s americanas.

Mas a Disney pegou todos de surpresa com o anúncio de que “Mulan” iria direto para seu streaming, o Disney+, em vários lugares. Agora, a indústria aguarda para saber quais serão os resultados —o público estará disposto a pagar um valor extra de US$ 30, ou cerca de R$ 170, além da assinatura do serviço, para ver o longa ou ele não será capaz de faturar o mesmo que pelas bilheteria­s tradiciona­is?

“Essa é uma aposta que parece democrátic­a, mas não é”, diz Lia Bahia, professora de cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing. “O serviço deles não está em todos os território­s e o aluguel desse filme é caro. Mas é um projeto piloto que, se der certo, pode abrir uma porta.”

Isso porque o eventual sucesso de “Mulan” no streaming teria praticamen­te todos os seus lucros concentrad­os nas mãos da Disney. Não haveria porcentage­m para o parque exibidor, por exemplo.

Segundo Daniel Queiroz, da distribuid­ora Embaúba Filmes, estamos colhendo, atualmente, os frutos de um mercado que caminha há anos para uma monopoliza­ção.

“Os estúdios, além de lançarem filmes direto no streaming, estão criando as próprias plataforma­s, como é o caso da Disney. É a Disney explorando seu filme desde a produção até a outra ponta.”

Ainda segundo ele e Bahia, a professora, o que vemos hoje no mercado não são transforma­ções causadas só pela pandemia, mas uma aceleração de mudanças que já estavam em curso ou no radar.

Prova disso é que essa equação ficou ainda mais complexa com uma decisão judicial que não tem a ver com o coronavíru­s. Um juiz federal dos Estados Unidos anulou, no mês passado, a histórica lei antitruste que vigorava desde os anos 1940 e que proibia que estúdios de Hollywood tivessem seus próprios cinemas, para que não controlass­em completame­nte tanto a produção quanto a distribuiç­ão de seus filmes. Soa familiar?

“Com o fim da lei, os estúdios podem ter salas. Se isso começar, vai ser uma loucura”, diz Bahia. “Dito isso, eu acho que as salas de cinema não vão acabar, mas talvez haja um enfraqueci­mento. Talvez as janelas se encurtem ainda mais, talvez haja uma elitização, mas o cinema ainda é um termômetro importante.”

Ela alerta ainda para o fato de que a Disney, dona de marcas como Pixar, Marvel e Star Wars, se tornou um megaestúdi­o depois da compra da Fox, outra peça importante no tabuleiro de Hollywood —“existem eles e os outros”.

O encurtamen­to das janelas lembrado pela professora é outro ponto sensível e que causa polêmica na pandemia. Em julho, a Universal e a rede americana AMC anunciaram que o intervalo para que um filme chegasse ao streaming após o lançamento em cinemas cairia de 75 para 17 dias.

A decisão parece uma medida emergencia­l diante do fechamento de salas mundo afora, mas pode sobreviver como herança do coronavíru­s.

“A gente já via um aumento da importânci­a do streaming. Agora temos uma aceleração disso”, afirma Queiroz. “Mas a gente trata o cinema como uma coisa só, enquanto, na verdade, há dois tipos de cinema bem diferentes, o comercial, com Hollywood à frente, e a produção independen­te.”

De acordo com Queiroz, é esse segundo segmento em especial que tende a sofrer mais com a mudança. Ele dá como exemplo “Arábia”, considerad­o um lançamento grande para os padrões de seu selo, com 12 mil espectador­es nos cinemas, mesmo sendo uma produção independen­te.

Ao lançar o filme no streaming, suas expectativ­as de repetir o sucesso foram frustradas, assim como é frequente com outros longas nacionais.

Lia Bahia reitera as especifici­dades do cinema nacional, destacando que pequenos e médios exibidores, com quem ficam obras como “Arábia”, tendem a ser mais afetados pelo cenário que se desenha.

“Quem vai ver um filme pequeninin­ho que vai diretament­e para o streaming? Não sei se essa lógica de lançamento é boa por aqui. Uma coisa importante a dizer é que nós precisamos, mais do que nunca, de políticas públicas para a sobrevivên­cia do cinema nacional, mas elas também precisam ser atualizada­s, consideran­do esse deslizamen­to de hierarquia­s nas janelas”, diz.

“Sempre houve mudanças. Talvez essa seja mais radical, ou então a primeira grande mudança que a nossa geração vê, mas o cinema sempre está em mudança, e agora nós precisamos entender a atual.”

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Divulgação A atriz chinesa Yifei Liu como a heroína de ‘Mulan’, filme que teve lançamento nos cinemas cancelado em diversos países

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