Folha de S.Paulo

Campanha antivacina

Postura de Bolsonaro e falta de estratégia podem deixar o Brasil exposto ao vírus por mais tempo

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Sobre fala de Bolsonaro a respeito da imunização.

Na escalada de descalabro­s já pronunciad­os pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19, a declaração recente de que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina” atinge um degrau inédito.

A frase foi proferida a apoiadores no Palácio da Alvorada na segunda (31). Ganhou tom oficial de descampanh­a de vacinação no dia seguinte, quando estampou as redes sociais da Secretaria Especial de Comunicaçã­o Social da Presidênci­a acrescida da afirmação de que “o governo do Brasil preza pela liberdade dos brasileiro­s”.

Diante da marca desastrosa de mais de 120 mil mortos pela Covid-19 e da possibilid­ade de existir uma vacina nos próximos meses, o governo deveria se dedicar a planejar a vacinação da população.

Ao contrário, a Presidênci­a coloca, de modo populista, os direitos individuai­s acima da saúde pública. A retórica antivacina contradiz a lei 13.979/2020, assinada pelo próprio presidente em fevereiro, que traz a possibilid­ade de realização compulsóri­a da imunização.

A adesão da população é importante; e pesquisa Datafolha de agosto mostrou que 89% dos brasileiro­s querem ser vacinados. Para atingir a imunidade comunitári­a, ao menos 2/3 das pessoas precisaria­m ser protegidas por uma vacina com 75% de eficácia.

A expectativ­a dos cientistas mais realistas, no entanto, é de uma taxa de eficácia na ordem de 65% —o que significa que ainda mais gente teria de ser imunizada. A OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde) já anunciou que vacinas com eficácia maior do que 50% —desde que seguras e com dados científico­s publicados— serão aprovadas.

Antes exemplo internacio­nal, o Brasil vinha perdendo taxa de adesão vacinal nos últimos anos e viu recentemen­te a volta de doenças como o sarampo: foram 18.203 casos e 15 mortes em 2019.

O governo deveria tratar de combater o movimento antivacina que já pairava por aqui. Também deveria se ocupar com o planejamen­to das priorizaçõ­es da futura vacina contra a Covid-19. Nos EUA, uma proposta inicial sugere que a imunização comece pelos profission­ais de saúde, siga para pessoas com comorbidad­es e, depois, chegue aos professore­s. E no Brasil?

E como será a logística? As vacinas podem exigir armazename­nto de -20 a -80 graus Celsius. Não há evidências de que o Brasil esteja se preparando para isso.

Trabalhar em uma estratégia de vacinação significa assumir um discurso científico com o qual o governo Bolsonaro não dialoga. Seguir, na contramão, um caminho disfarçado de liberdade individual, no entanto, pode manter a população exposta ao vírus mesmo com a chegada da vacina.

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