Folha de S.Paulo

Pra inglês ver?

No setor público, é preciso encarar a ‘tirania das pequenas decisões’

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado H. Mendes | qu

Muita gente boa gastou um tempo danado, nos últimos meses, tentando encontrar algum “espaço fiscal” para garantir uma renda mínima de R$ 300 a famílias muito pobres, no que seria o Renda Brasil.

Ninguém encontrou. A proposta orçamentár­ia foi para o Congresso sem o benefício. Nesse meio tempo, não obstante, deu tempo para a AGU avalizar o acúmulo de vencimento­s de militares acima do teto salarial; deu tempo também para o Congresso autorizar a criação do novíssimo TRF-6, em Minas Gerais.

Deu tempo para o STF proibir a redução de jornada e salário de servidores públicos, ao mesmo tempo que autorizava o acúmulo de vencimento­s e jetons por participaç­ão em conselhos de estatais, acima do teto. E para o Congresso confirmar e reconfirma­r nosso generoso fundão eleitoral para as campanhas do final de ano. Só não deu para arrumar o dinheiro para os R$ 300. Como se costuma dizer no jargão de Brasília, governar é eleger prioridade­s.

No fundo, esta é a força da regra do teto. Ela obriga o país a fazer escolhas. Nos impõe a dureza do realismo fiscal e põe a nu o jogo de pressões da política “sem romance”, como gostava de dizer James Buchanan.

Fazer um ajuste estrutural do setor público é complicado por muitas razões. Uma delas é que não há bala de prata para resolver o problema. Sua solução depende de um amplo leque de decisões, sendo que nenhuma, isoladamen­te, irá resolver o problema. É o que nos dizem os exemplos que mencionei acima. Terminar com o financiame­nto eleitoral? Dois bilhões resolvem o problema fiscal? Seria razoável pedir aos políticos para cortar seus cabos eleitorais e carros de som só por causa disso?

O mesmo vale para a “PEC dos pendurical­hos”, do deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), e projetos similares que tramitam no Congresso. Alguns milhares de servidores terão que se virar com R$ 39,3 mil? Para que mesmo? Uma enorme confusão para cortar R$ 2 ou 3 bilhões do Orçamento?

Eliminar as “licenças-prêmio”? Cortar os quinquênio­s? Promoções por mérito? Será que isso compensa? No mercado, a competição gera um incentivo automático para que coisas assim sejam feitas. No setor público, é preciso encarar a “tirania das pequenas decisões”. Fazer um sem número de escolhas, todas difíceis e incapazes de resolver o problema, mas que no conjunto, e no longo prazo, podem funcionar.

Há também um problema de ação coletiva. Podemos até conceber, em tese, que todos os grupos organizado­s ganhariam alguma coisa com um ajuste abrangente das contas públicas. Mas quem tomaria a iniciativa? Deputados topam reduzir despesas de gabinete no segundo Parlamento ma isca rodo planeta? Quem sabe cortar um pedaçodas emendas parlamenta­res?

O governo agora envia ao Congresso a proposta de reforma administra­tiva. A notícia é boa, mas é preciso ficar esperto. A pergunta, no fundo, é se o sistema político vai levar isso a sério ou se é apenas mais um projeto pra inglês ver, como sempre foi o te mada reforma política evais e tornando a reforma tributária.

Muitos dos temas mencionado­s aqui simplesmen­te não dependem de um projeto de reforma (teto salarial, avaliação de desempenho, redução de jornada). Por que eles não avançam? Corporaçõe­s, em regra, ganham o jogo contra os interesses difusos e desorganiz­ados, no mercado político.

É isso que assistimos neste Brasil triste de 2020. Bastou sair de cena a emergência (e o gasto por conta) e passar a valer o jogo de soma zero do teto orçamentár­io que os 20 milhões que teriam o benefício dos R$ 300 dançaram fácil. A turma do andar de cima ocupou rapidinho as cadeiras vazias.

O desafio é isso não se repetir com a reforma administra­tiva. Não é de todo ruim que ela se aplique aos futuros servidores. O ajuste que precisamos fazer em nosso contrato político será mais fácil se tivermos que lidar apenas com direitos ainda não “adquiridos”.

Talvez seja este o custo a pagar para mover a imensa inércia brasileira e fazer alguma reforma no setor público andar pra frente.

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