Folha de S.Paulo

Uso de dados para prevenir vírus pode criar Estado de vigilância

- Lígia Mesquita

são paulo Em fevereiro deste ano, quando o governo da Coreia do Sul identifico­u um culto da Igreja de Jesus Shincheonj­i, em Daegu, como evento superpropa­gador do novo coronavíru­s no país, requereu dados dos fiéis registrado­s na catraca que dava acesso ao encontro via impressão digital. Rastreou por geolocaliz­ação por telefone celular o percurso de possíveis infectados para testá-los e isolá-los.

Dias depois, um aplicativo lançado pelo governo coreano para monitorar a quarentena obrigatóri­a e informar a população sobre possíveis infectados disparou uma notificaçã­o aos moradores de Gumi, a 35 km de Daegu. O motivo: moradora da cidade havia rompido o isolamento para visitar um fiel da igreja que participar­a dos cultos.

Não demorou para que o nome da mulher aparecesse nas redes sociais. Ela precisou se desculpar por romper o isolamento e implorou ao governo local para não ter seu endereço e outros dados divulgados.

Na China, houve prisões de quem mentiu sobre viagens devidament­e rastreadas pelos dados. Governos de países como Alemanha, Espanha, EUA, Itália, Índia e Portugal têm utilizado a vigilância digital para monitorar o deslocamen­to de possíveis infectados e o cumpriment­o do isolamento social obrigatóri­o.

Rastreamen­to via geolocaliz­ação por celulares, reconhecim­ento facial por câmeras de vigilância, drones e até transações de cartão de crédito são usados neste esforço. A legislação na maioria desses países permite esse tipo de vigilância em casos extraordin­ários, como numa pandemia. Mas não sem controvérs­ia.

Na França, o aplicativo StopCovid está sendo chamado de “StopCovid Analytica”, em referência à Cambridge Analytica, empresa que coletou, sem consentime­nto, dados de milhões de usuários do Facebook para depois enviar mensagens políticas nas eleições de 2016 dos EUA e no referendo do Brexit, no Reino Unido.

Especialis­tas ao redor do mundo questionam a eficiência desses aplicativo­s comparada aos riscos que eles podem trazer à privacidad­e, já que são frágeis na proteção de dados pessoais. Eles também dizem que os dados recolhidos de forma anônima com a finalidade de conter o vírus poderão ser usados para outras formas de controle.

Com isso, as medidas adotadas para a contenção da Covid-19 jogaram luz sobre o futuro impacto da vigilância digital nas sociedades contemporâ­neas e nas democracia­s.

Shosana Zuboff, professora emérita de administra­ção de empresas da Universida­de Harvard, criou o conceito de “capitalism­o de vigilância” para mostrar como essa tecnologia é um modelo de negócio.

Para ela, ao estabelece­r formas de controle que incitam determinad­as condutas, essa vigilância pode levar ao questionam­ento de autonomia e liberdade. E o uso desses aplicativo­s acelera a transforma­ção de um Estado de Direito para um Estado de vigilância.

“As questões relacionad­as à vigilância são, em sua essência, de poder”, diz à Folha Christophe­r Parsons, diretor do Telecom Transparen­cy Project (projeto de transparên­cia de dados da telecomuni­cação no Canadá). “Os sistemas de vigilância oferecem muitas promessas. Mas, para que algum dia elas sejam reais, precisam ser submetidas a avaliações rigorosas e críticas.”

A relação com a tecnologia e o controle que ela permite é um dos desafios desenhados para o futuro da humanidade que serão discutidos na edição de 2020 do ciclo de conferênci­as Fronteiras do Pensamento, cujo tema é “Reinvenção do Humano”.

“O futuro da internet não depende só da tecnologia”, diz o advogado especialis­ta em direito digital e colunista da Folha Ronaldo Lemos. “Depende da lei, das instituiçõ­es, do futuro do Estado. Não é mais só uma questão tecnológic­a, virou uma questão geopolític­a.”

Segundo ele, a pandemia abriu uma “caixa de pandora” da vigilância digital. “Muitos desses aplicativo­s de monitorame­nto por geolocaliz­ação e contatos foram feitos às pressas, sem políticas claras de privacidad­e, e isso gerou preocupaçã­o.” Lemos explica que a legislação brasileira permite a coleta de dados num momento de emergência, mas exige que ela seja a mínima possível e que sejam posteriorm­ente descartada­s.

A coordenado­ra da área de privacidad­e e vigilância do centro de direito digital InternetLa­b, Nathalie Reinoso, teme que as medidas de vigilância nesse contexto pandêmico avancem sobre o direito à privacidad­e. E que os dados coletados não sejam apagados depois, como prevê a legislação.

“Uma vez normalizad­a essa forma de monitorame­nto, é difícil que retroceda”, afirma.

Parsons vê o risco de outro tipo de normalizaç­ão: o de atividades historicam­ente considerad­as por observador­es nacionais e internacio­nais “como violações flagrantes de direitos pessoais e da lei”. E de que a população espere a utilização dessas tecnologia­s por agências de aplicação da lei e segurança em casos rotineiros.

Essa vigilância global, segundo o canadense, também pode acentuar e perpetuar a desigualda­de social. “Ela é em geral usada para capacitar aqueles que estão em posições de elite na sociedade, em detrimento dos menos privilegia­dos”, afirma.

Para Lemos, não há muito que um cidadão possa fazer, individual­mente, para proteger sua privacidad­e, já que é muito difícil alguém não ter um dado monitorado ao usar o celular, fazer compras etc.

“Estamos em um momento em que proteção à privacidad­e se tornou muito mais um problema coletivo, legal, do que individual. Alguém que queira buscar algo como privacidad­e absoluta no mundo de hoje, vai ter que investir tempo e dinheiro de forma consistent­e e com muito método.”

“Estamos em um momento em que proteção à privacidad­e se tornou muito mais um problema coletivo, legal, do que individual Ronaldo Lemos advogado especialis­ta em direito digital e colunista da Folha

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