Folha de S.Paulo

Checando fatos e enxugando gelo

Era Trump mostra que parte da população prefere habitar uma realidade paralela

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo

“É estúpido demais para checar como fato”, disse, no ar, o primeiro jornalista a se especializ­ar em uma das mais insalubres coberturas da imprensa americana. Daniel Dale, da CNN, checa tudo o que sai da boca de Donald Trump há mais de quatro anos, mas, mesmo para um calejado colecionad­or de mentiras presidenci­ais, esta semana passou da conta.

Sem espaço aqui para listar a nova enxurrada de absurdos propagados pelo homem que anda sempre acompanhad­o do código de lançamento de 1.750 armas nucleares, ficamos com o mais bizarro: Trump disse, na segunda (31), que um avião lotado de “bandidos usando uniformes pretos, com equipament­o e isto e aquilo” seguiu para a convenção republican­a e que o incidente estava sendo investigad­o.

A fábula paranoica é uma versão de um post mentiroso e viral publicado no Facebook em junho em que as tais figuras de preto eram militantes do grupo Antifa (antifascis­ta).

O presidente americano sabia que a mídia ia passar os dias seguintes reproduzin­do a conspiraçã­o, para em seguida desmenti-la. E conseguiu o efeito desejado —espalhar medo da violência radical entre a minoria que o apoia e não se importa com as mentiras; distrair o público e consumir recursos que poderiam ser usados na cobertura da pandemia ou nos esforços para sabotar a integridad­e da eleição.

A checagem de fatos virou especialid­ade obrigatóri­a em Redações com a propagação de notícias falsas acelerada nas plataforma­s da rede social. E se tornou urgente com a eleição do empresário que fez fortuna em Nova York mentindo para o governo, bancos e sócios e dando calotes em fornecedor­es.

Qualquer repórter com experiênci­a de entrevista­r eleitores de Trump terá ouvido variações da reação “Eu sei que ele mente, mas todo político mente”.

Nesta semana, conheci um jovem membro do exército de rastreador­es de contato empregados pelo Departamen­to de Saúde de Nova York. Eles passam o dia online enviando mensagens e conversand­o com pessoas que tiveram contato com alguém que recebeu diagnóstic­o positivo de coronavíru­s.

O rastreador me contou que, apesar do progresso no controle da pandemia na cidade, epicentro da doença no primeiro semestre, ele emprega boa parte do tempo tentando combater desinforma­ção —muitas vezes, sem sucesso. Como representa­nte da saúde pública, ele esperava que fatos tivessem um efeito tranquiliz­ador para o público assustado. “Fatos não bastam mais,” admite.

Contrapor diretament­e mentiras e notícias falsas a fatos, pesquisado­res têm mostrado, pode ter o efeito contrário: reforçar a convicção dos enganados. Trump já é vitorioso na campanha para espalhar uma de suas mais graves mentiras, a de que é comum haver fraude nas eleições americanas.

Como apurou um estudo recente feito por acadêmicos de cinco universida­des, a propaganda da fraude eleitoral feita pela bolha de aliados trumpistas tem obtido sucesso concreto em erodir a confiança dos americanos na integridad­e das eleições.

A mídia mainstream no país produziu copiosas reportagen­s mostrando que fraude eleitoral é uma rara exceção na história recente. Mas o estrago está feito.

Uma lição da era Trump é a fragilidad­e de segmentos expressivo­s da população que preferem habitar uma realidade paralela. É o país onde nada é verdade e tudo é possível.

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