Folha de S.Paulo

Por que não começamos agora?

Está mais que na hora de brancos votarem em candidatas e candidatos negros

- Cida Bento Diretora-executiva do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des), é doutora em psicologia pela USP

Quando, em 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou constituci­onal a adoção de políticas de reserva de vagas para assegurar o acesso de negros e indígenas a instituiçõ­es do ensino superior, 42% das universida­des federais já tinha algum tipo de ação afirmativa para esses segmentos, como forma de reduzir as desigualda­des.

A autonomia das universida­des permitiu-lhes, algumas vezes com oito anos de antecedênc­ia, definir em que lado da história estariam, parafrasea­ndo o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, quando destaca: “O TSE está do lado dos que combatem o racismo”.

Nesse sentido, a recente decisão do Tribunal Superior Eleitoral de obrigar os partidos a destinar recursos do fundo eleitoral de maneira proporcion­al à quantidade de pessoas negras e brancas coloca na pauta o imperativo da ética e da justiça de assegurar múltiplas vozes, não só nas instâncias dos Poderes Legislativ­o mas também do Executivo do país.

Celebrando essa grande conquista do movimento negro, protagoniz­ada pela guerreira deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), urge iniciar imediatame­nte os passos que tornem o sistema político mais equânime.

O desafio é grande, e os partidos podem começar a se movimentar, aqui e agora, pois vamos enfrentar o racismo sistêmico, estrutural, que o movimento negro vem denunciand­o há muito tempo e que foi citado nas vozes de ministros do STF.

A pequena manifestaç­ão de apoio de partidos a essa grande conquista da população negra e o silêncio total de alguns dos grandes partidos nos alertam. Como nos lembra Eni Orlandi (1995), um certo silêncio acompanha o exercício do poder. É o silêncio da opressão: naquilo que se silencia, a ideologia está em pleno funcioname­nto. Assim, é fundamenta­l dimensiona­r o significad­o do silêncio dos grande partidos.

Os privilégio­s estão em debate. Pessoas brancas ocupam 75% das vagas, homens brancos na faixa etária de 50 anos, com curso superior, compõem majoritari­amente (62,8%) o perfil básico dos deputados eleitos para o Congresso Nacional, perfil que contrasta com o das mulheres negras, majoritári­as na população brasileira, mas quase que completame­nte ausentes dessas instâncias de poder (2,5%), conforme repositóri­o de dados eleitorais.

Segundo o pesquisado­r Osmar Teixeira (2019), em média, os brancos que disputam eleições estaduais têm patrimônio quatro vezes maior do que pessoas negras com as mesmas condições de escolarida­de, o que revela grande disparidad­e patrimonia­l que impacta os resultados eleitorais.

Esforços para a mudança nesse cenário vêm de longe. Podemos nos lembrar de um momento, em 1936, quando a Frente Negra Brasileira transformo­u-se em partido político com projeto de levar aos Parlamento­s as demandas da população negra, porém destituída dessa condição em 1937, com o golpe de Getúlio Vargas e o Estado Novo, juntamente com os demais partidos políticos também cassados.

Por fim, vale destacar que parlamenta­res negras e negros, no mais das vezes numa batalha solitária, têm contribuíd­o para o aperfeiçoa­mento da democracia, defendendo propostas para criminaliz­ar o racismo, para assegurar a cultura e a história africana e afro-brasileira no ensino regular, para implantar programas de ação afirmativa e para o desenvolvi­mento de políticas de reparação dos descendent­es de escravizad­os.

Nas Câmaras e nas Assembleia­s, ao falar de relações raciais, eles auxiliam o país a encontrar seu melhor caminho, a conhecer sua verdadeira história e se reposicion­ar.

O senador Abdias do Nascimento realizava conferênci­as que educavam e traziam valores civilizató­rios para um território árido, desumaniza­do pelos interesses imediatist­as que recorrente­mente movimentam as instâncias de poder.

Assim, identifica­r, debater e apoiar o aumento do número de candidatur­as negras para as eleições de 2020 é tarefa urgente pra todas e todos nós.

Aliás, outra mudança já poderia se instituir de imediato na mesma esteira: está mais do que na hora de brancos votarem em candidatas e candidatos negros.

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