Folha de S.Paulo

Governo usa verba da Covid para afagar senadores aliados

Documento mostra que congressis­tas puderam direcionar valores a bases eleitorais

- Iara Lemos

brasília O governo Jair Bolsonaro (sem partido) destinou parte dos recursos reservados para o combate à pandemia da Covid-19 para afagar senadores de suas bases eleitorais, excluindo partidos de oposição como PT e Rede.

O montante a que aliados tiveram acesso é mais do que o dobro do que congressis­tas têm direito por ano em emendas parlamenta­res.

Esses instrument­os, no valor de R$ 15,9 milhões, garantem a deputados e senadores uma reserva no Orçamento para atender pleitos locais. Já o dinheiro adicional —até R$ 30 milhões por parlamenta­r— deve ser aplicado em saúde, e não conta como emenda.

As benesses rendem dividendos políticos, e, no Congresso, adesão ao Executivo —em ano de eleição, emendas parlamenta­res ficam suspensas por lei.

Documento obtido pela Folha mostra que parte do dinheiro da portaria 1.666/20 foi carimbado por senadores que apoiam Bolsonaro. A oposição não fez indicações de gastos. O ofício assinado pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES), por exemplo, encaminhou recursos previstos na portaria para equipament­os de saúde no seu estado. No caso, foram R$ 24 milhões.

“Informo que o recurso já está disponível. Assim, encaminho, em anexo, nova relação para distribuiç­ão do referido recurso”, escreveu o senador no dia 14 de julho.

O dinheiro foi destinado a hospitais e Santas Casas de sete cidades capixabas. Houve reserva de dinheiro público para a compra de medicament­os, como azitromici­na, ivermectin­a e hidroxiclo­roquina (R$ 10,6 milhões). Os medicament­os não têm eficácia comprovada contra a Covid.

“Foi um trâmite legal, não tenho nada a dizer. Foi para a saúde do estado, não vejo nenhuma ilegalidad­e mesmo”, disse Do Val à Folha.

A portaria assinada pelo ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, trata da distribuiç­ão de R$ 13,8 bilhões para ações contra Covid. O dinheiro tem origem em três medidas provisória­s, aprovadas pelo Congresso desde março, e destinada a verba em parcela única aos entes federados com base em dados como população, leitos hospitalar­es disponívei­s e incidência de Covid.

No entanto, na hora de indicar para onde o dinheiro iria ser enviado, esses critérios não ficaram claros nem mesmo para os líderes do governo na Casa. Houve, inclusive, discussões no Senado referentes à verba.

Chico Rodrigues (DEM-RR), vice-líder do governo no Senado, disse à Folha que, inicialmen­te, recebeu o aval do governo para indicar R$ 20 milhões por meio da portaria. Ele, contudo, considerou o valor insuficien­te.

Diante da reclamação, teve autorizado R$ 30 milhões para destinar para suas bases. Até a última quinta-feira (27), Rodrigues havia contabiliz­ados R$ 17 milhões liberados, pagos, segundo ele, pelo governo à Secretaria Estadual de Saúde de Roraima. Foram atendidos oito municípios indicados pelo vice-líder.

“Por favor, minha filha. Eu não sei dizer os critérios [para indicação do recurso]. Eu estava na pandemia, quando veio a indicação da liderança, eu fiz a indicação [do recurso] para as cidades”, afirmou à Folha. “O cobertor é curto e a demanda é grande, e os deputados e senadores que estão sempre atentos que é quem correm atrás. São os políticos mais experiente­s.”

Questionad­a sobre o fato de senadores aliados terem direcionad­o recursos para suas bases eleitorais, a Secretaria de Governo da Presidênci­a da República disse que as indagações deveriam ser feitas ao Ministério da Saúde.

Dos oito emails de solicitaçõ­es encaminhad­os ao longo de duas semanas, quatro tiveram o mesmo texto enviado como resposta. O ministério não informou por que os senadores puderam fazer a indicação do destino do recurso.

A distribuiç­ão ainda motivou queixas entre os beneficiad­os. O líder do PR no Senado, Jorge Mello (SC), por exemplo, reclamou da demora do governo na liberação da verba: “Acho que nem 40% do valor que consegui na portaria, uns R$ 10 milhões, foi liberado. Foi direto de fundo a fundo para município que eu coloquei lá”. Por ser dinheiro fora de emendas parlamenta­res, a destinação dos recursos da portaria não é vinculada ao exercício do mandato dos congressis­tas.

Parlamenta­res da oposição dizem que entre 40 e 50 senadores da base de Bolsonaro direcionar­am recursos da portaria para redutos eleitorais, ao modelo da liberação de verbas realizadas por meio de emendas parlamenta­res. O Ministério da Saúde também não respondeu quantos foram atendidos.

“Fizeram [a destinação] como fazem em emenda parlamenta­r. Não era para onde era necessário o dinheiro, era para onde o senador queria mandar”, criticou o líder do PSL, Major Olimpio (SP). “Foi criminosa a destinação do governo para o recurso. O crime foi do governo”, disse.

Olimpio chegou a ser procurado para destinar os recursos por meio da portaria, mas disse que negou a indicação ao saber que nem todos os parlamenta­res teriam a oportunida­de.

Integrante­s do PT, da Rede e do Cidadania também não foram procurados para direcionar recursos.

O líder da Rede no Senado, Randolfe Rodrigues (AP), encaminhou requerimen­tos ao Ministério da Saúde e à Comissão Mista do Congresso que avalia os gastos do governo na pandemia, cobrando explicaçõe­s sobre a destinação com carimbo de parlamenta­res aliados do governo. Não obteve resposta.

O senador encaminhou um documento ao TCU em que pede que seja realizada uma auditoria na distribuiç­ão dos recursos feitos por meio da portaria. Randolfe quer saber o nome de todos os senadores aliados que usaram recurso da portaria para beneficiar municípios de suas bases.

“Eu quero saber as regras oficiosas para distribuiç­ão [do dinheiro] a partir de indicação de parlamenta­res, que só podem ocorrer por um método, que são emendas parlamenta­res”, disse Rodrigues.

Segundo o Ministério da Saúde, a portaria destinou os recursos “conforme critérios técnicos”, usados “de acordo com o planejamen­to local”. “Ou seja, cada secretário de saúde, seja municipal, seja estadual, utiliza o dinheiro naquilo que ele avalia como mais necessário.”

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Roque de Sá - 18.dez.19/Agência Senado O senador Marcos do Val (Podemos-ES), que assinou o ofício

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