Folha de S.Paulo

O moralismo é um espremedor

Moralista é um hipócrita que reprime nos outros o que não reprime em si mesmo

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

Pense no espremedor de batatas comum como metáfora do moralismo. É um cilindro cheio de furos pelos quais sairão os vermicelli da batata espremida. Uma das bases é aberta, para que entre o pistão que vai comprimir o tubérculo.

À primeira vista, os vermicelli parecem exceções que fogem da essência da batata fervida. Imagine que a batata represente um código moral, um sistema de crenças, tradições e comportame­ntos “exemplares”, feitos para reger a conduta da gente; sob a pressão do pistão, desejos e condutas “desviantes” sairiam dela.

Durante anos, Eliot Spitzer, então governador do estado americano de Nova York, fora feroz na luta contra a prostituiç­ão até que, em 2008, o jornal The New York Times revelou que ele era o patrono de um serviço de acompanhan­tes, o Emperors Club VIP.

Talvez você prefira comparar o que Flordelis (cantora gospel e deputada federal) devia pregar do púlpito com uma certa extravagân­cia dos comportame­ntos que a investigaç­ão policial lhe atribui agora, desde arregiment­ar filhos para matar o marido até passar a última noite antes do assassinat­o num clube de suingue todos juntos: o marido, a filha (também ex-mulher do marido) e o companheir­o dela.

Um aparte. Sou contra assassinar marido incômodo, acho mais certo divorciar. Há comunidade­s religiosas em que a viuvez é preferível ao divórcio.

Voltando. Talvez você prefira ainda a versatilid­ade do “pastor” Everaldo. “Influencia­dor” na distribuiç­ão de cargos do governo fluminense, ele foi preso com seus filhos por maracutaia­s nos gastos de saúde do mesmo governo. Numa famosa foto, Everaldo aparece no rio Jordão, com roupinha de são João Batista, imergindo nas santas águas o então deputado Bolsonaro, que está com cara de quem pensa em Deus.

“Vox clamantis in deserto” (a voz de quem clama no deserto). Essas palavras, que já foram do profeta Isaías, João (1:22-23) põe na boca do Batista, quando ele se apresenta. Talvez seja por causa do deserto, tanto eu quanto a tradição cristã sempre imaginamos o Batista magro e emaciado pelas provações e o jejum. Aconselho quem quiser se vestir de Batista que maneire no churrasco e na cerveja.

Mas voltemos de novo ao que importa. Apuramos que a batata do moralismo, espremida, produz vermicelli das próprias condutas que ela, em tese, abomina. Esses vermicelli são exceções, desvios?

Segundo nossa metáfora elas não podem ser exceções, pois, empurrando o pistão a fundo, a batata fervida inteira se transforma­rá em vermicelli. É como se a batata fervida, aliás, já fosse um aglomerado de vermicelli. Ou seja, o moralismo é um aglomerado de desejos desviantes que só espera ser espremido para revelar do que é feito.

Qual é a diferença entre o moralismo e uma moral, seja ela qual for (de fundamento divino, humano, racional ou tradiciona­l)?

A diferença é que uma moral é o conjunto de princípios e regras que um indivíduo se impõe, na ideia de que respeitar essas prescriçõe­s seja para ele uma prática boa, virtuosa, ou seja, uma conduta que lhe permita dar o melhor de si ao longo da vida. Essa, cá entre nós, é uma definição artistotél­ica da virtude, que vale a pena ser lembrada, sobretudo quando a gente mede sua vida que já passou: seja qual for o lugar, o tempo e o campo em que me tocou viver, será que dei o melhor de mim?

Então, qual é a diferença entre moral e moralismo? O moralismo seria apenas uma moral mais fervorosa? Só se a gente confundir o fervor com a fervura (que de fato são palavras com significad­os próximos e etimologia­s mais ainda).

Parece que 1) a moral se torna especialme­nte fervorosa quando o indivíduo não consegue se manter à altura de seus próprios princípios, 2) quando a moral se torna muito fervorosa, ela ferve mesmo e se torna uma batata fervida, pronta para o espremedor —ou seja, ela se torna um moralismo que aglomera os vermicelli dos desejos que fogem da moral que o indivíduo tentava se impor (conforme os exemplos citados).

Resumindo, a moral é uma linda batata, a qual não se desfaz em vermicelli. Cada um tem a sua. Quando nos tornamos fervorosos (ou seja, boçais que querem impor sua moral aos outros), transforma­mos nossa moral em moralismo. Nossa linda batata se torna uma batata fervida, pronta para o espremedor.

Nesse caso, inevitavel­mente, mais cedo ou mais tarde, o espremedor revela que o moralista é só um hipócrita que tenta reprimir nos outros o que ele não consegue reprimir nele mesmo.

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2020, Araraquara Luciano Salles, Esta não é La Trahison des Images,

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