Suspense traz embate entre a Argentina rica e seu interior esquecido
‘Crimes de Família’, na Netflix, mostra contrastes de país equilibrado entre a opulência decadente e a miséria social
Há duas Argentinas no excelente “Crimes de Família”, de Sebastián Schindel, thriller familiar pensado para a tela grande, mas que acabou estreando mundialmente na Netflix por causa da pandemia do novo coronavírus.
Uma é a Argentina rica e decadente dos que moram no coração do empinado bairro da Recoleta, em Buenos Aires. Ali vive um casal desgastado pelo convívio, pelos problemas com o filho viciado e abusador, em que regem valores de uma sociedade desigual, corrupta e patriarcal. São eles Alicia, papel de Cecilia Roth, e Ignacio, vivido por Miguel Ángel Solá, que parecem dedicados a viver suas frustrações detrás das aparências.
A outra é a Argentina do interior do país, mais especificamente da província de Misiones, uma das mais pobres e esquecidas, que faz fronteira com o Brasil. Dali vem Gladys, papel de Yanina Ávila, analfabeta e nada articulada, que trabalha como a doméstica do casal da Recoleta.
Alicia e Gladys têm dessas curiosas relações entre empregadoras e empregadas na América Latina. Alicia cria como se fosse seu o filho de Gladys, mas, em todo momento, a faz lembrar da enorme distância que as separa, desde os mínimos comentários sobre o uso de xícaras ou a falta de cuidados pessoais da funcionária.
A tensão entre as duas Argentinas se dá quando os habitantes deste endereço na nobre rua Posadas têm de atravessar dois julgamentos.
Num deles, Alicia adota o comportamento de muitos ricos, expondo a corrupção do Judiciário. Para tirar o filho criminoso, Daniel, papel de Benjamín Amadeo, da cadeia, ela não hesita em subornar um promotor e retirar do processo uma evidência-chave que o incriminaria. No outro, tenta aplicar a lei com toda a dureza contra Gladys, que, de fato, cometeu um crime terrível.
Uma das cenas mais tocantes é a da conversa da psicóloga interpretada por Paola Barrientos com Gladys, que lhe conta de sua vida em Misiones, abusada pelo pai e explorada pela madrasta.
No tribunal, há um embate tenso e crucial para entender a realidade de muitas mulheres latino-americanas. A psicóloga tenta fazer com que o promotor se dê conta de que Gladys não tem ferramentas para compreender grande parte do que lhe aconteceu.
O filme, que teve apoio da Organização Internacional do Trabalho e da ONU Mulheres, cumpre excelente papel em expôr a realidade feminina no contexto da região. E o faz sem parecer panfletário.
O drama que vive Alicia e a transformação de seu personagem lembram, e muito, o da personagem interpretada por Norma Aleandro no filme “A História Oficial”.
Naquele longa de 1985, uma mulher do mesmo perfil social de Alicia vai aos poucos se dando conta do que a Argentina havia vivido durante a ditadura militar e de que seu papel era mais relevante do que cumprir com os requisitos de sua posição na sociedade.