Folha de S.Paulo

Viajante: seu novo normal

Manipulada­s por todos, as bandejas do raio-X parecem agora mais ameaçadora­s do que qualquer objeto perfurocor­tante

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”

Quanto mede um metro na fila do embarque no aeroporto de Guarulhos em tempos de pandemia? Mais ou menos 20 centímetro­s. Ou menos.

Essa não foi a primeira coisa que me chamou a atenção na minha primeira viagem de avião em quase seis meses. Mas certamente foi a mais incômoda ou, ainda, a que mais me deixou preocupado nesse Brasil que acha que, ao contrário do que as estatístic­as mostram, a pandemia já passou.

Fui então para Fortaleza na semana passada, uma cidade que eu adoro e de onde estava morrendo de saudades. Não, não foi a passeio, apesar de toda a paixão que tenho pela capital cearense, mas a trabalho. E confesso que não sei se, preocupado com a saúde, estaria me sentindo seguro o suficiente para ir até lá só por lazer.

Por exemplo, há semanas planejo um fim de semana no Rio (agora estou baseado em São Paulo), mas acabo sempre desistindo quando me lembro dos trâmites de uma simples ponte aérea e das possibilid­ades de contaminaç­ão: muita gente circulando, ar condiciona­do do avião, múltiplas superfície­s duvidosas...

Isso tudo envolvendo um voo de 45 minutos! Imagine o nível de preocupaçã­o para enfrentar as três horas e meia entre São Paulo e Fortaleza... Mas era um trabalho interessan­te e, sim, a saudade me ajudou a tomar coragem. E lá estava eu embarcando em GRU, na manhã da última quinta-feira.

A primeira estranheza teve a ver com o vazio daquele espaço tão enorme. Vi alas inteiras de balcões desertos, pelos quais as pessoas passavam lentamente, como num daqueles filmes de ficção científica pós-apocalipse —um futuro que praticamen­te já é presente.

E o medo de tocar em tudo já começa no totem para você mostrar seu código de barra do cartão do embarque e segue pelo raio-X, onde aquelas bandejas manipulada­s por todos me pareceram mais ameaçadora­s do que qualquer objeto perfurocor­tante que alguém pudesse estar levando a bordo.

Passando pela segurança, vejo o primeiro posto de álcool gel, meio escondido num canto. Abandonado. Bem como as cadeiras de massagem (apesar de os massagista­s aguardarem em vão um cliente). E os bancos de espera, marcados com um “x” para evitar que as pessoas sentem umas ao lado das outras.

Caminho em direção ao portão de embarque e vejo as mesas de uma ala de alimentaçã­o pouco povoadas. Bom sinal.

Mas minha esperança de uma viagem antissépti­ca desmorona quando ouço, não sem uma ponta de nostalgia, o alto-falante chamar os passageiro­s. “Primeiro as prioridade­s por lei”, geralmente um ramerrão, soou como música.

Ignorando as orientaçõe­s, todos se amontoaram nas filas. Ao tentar me manter a um metro de quem estava na minha frente ouvi mais de um comentário impaciente, como se eu não estivesse a fim de avançar. Fiz-me de mouco.

Da balbúrdia do embarque, o clima misteriosa­mente mudou para solene, quase sombrio, ao entrarmos na aeronave. Sempre de máscara, nos sentamos comportada­mente, sem reclamar, como se a apreensão de dividir o mesmo ar com um punhado de pessoas pelas próximas horas finalmente tivesse acordado todo mundo para o risco que corríamos ali.

Dito isto, o voo em si foi sem incidentes. Tive a sorte de não ter ninguém ao meu lado, mas vi várias fileiras lotadas —e me perguntei que sentido fazia separar as pessoas nos bancos do aeroporto se nos aviões elas estariam coladas a estranhos...

Se houve de fato uma boa surpresa nessa reestreia nos ares ela veio na hora do desembarqu­e. Obedecendo novas regras, as pessoas agora saem do avião fila por fila. E todos têm de ficar sentadinho­s até a sua ser chamada. Que maravilha!

Cada um tira sua bagagem sem empurra-empurra. Demora mais, claro. Mas é tão ordenado. E isso é tudo que a gente quer em tempos de caos. Aliás, mesmo em tempos tranquilos.

Será que dá para a gente seguir desembarca­ndo assim quando esse pesadelo tiver acabado?

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