R$ 50 mi de órgão médico vão parar em salão de beleza
Cerca de 50 mil médicos brasileiros foram lesados durante dez anos com desvios das contribuições feitas por eles à principal associação da categoria, a AMB (Associação Médica Brasileira). Auditorias apontam um rombo superior a R$ 50 milhões, praticamente metade das receitas da entidade nesse período, crime que vem sendo investigado pela polícia paulista.
A principal suspeita é que o esquema era comandado por uma funcionária que trabalhava na entidade havia 26 anos e que utilizou contas da família e de empresas dela mesma, entre as quais de dois salões de beleza, para transferir o dinheiro. A investigação busca saber quais outras pessoas ajudaram nos desvios e como ninguém percebeu essa sangria que durou ao menos uma década.
Segundo o presidente da AMB, Lincoln Lopes Ferreira, alguns pontos são certos: “1) que ela fez, porque ela é ré confessa; 2) Que é praticamente impossível ela ter feito isso sozinha; 3) até o momento, exceto o entorno da funcionária, não identificamos ninguém ligado à administração, à diretoria da associação [no esquema]”.
A contribuição anual dos médicos é de R$ 296. A receita anual da entidade é de cerca de R$ 10 milhões e, com a detecção da fraude, suspeita-se de que fosse, na verdade, de R$ 18 milhões
O esquema de pilhagem aos cofres da entidade foi comunicado às autoridades pela própria AMB, em abril do ano passado. De acordo com documento enviado à polícia, as suspeitas de desvios sugiram no anterior quando foram percebidos problemas nas contabilidades da entidade.
Ao ser questionada por superiores, segundo a AMB, Maria Aparecida Rodrigues admitiu os desvios de recursos. Responsável pelo departamento financeiro, ela era uma das mais antigas funcionárias da associação, onde trabalhava desde 1992.
“Já no dia 19 de julho, a exfuncionária Maria Aparecida Rodrigues procurou o gerente-executivo da AMB e confessou ter subtraído ‘uns dois e pouco a três [milhões], ou coisa assim’, das contas bancárias da AMB”, diz trecho do documento enviado à polícia.
Ela foi demitida por justa causa, após admitir os desvios. À Folha ela disse ter sido coagida a admitir os desvios e afirma que seu nome está sendo usado (leia abaixo).
Após demitir a servidora, a AMB iniciou investigações internas, com auxílio de uma auditoria externa. Foi nesse trabalho, segundo a entidade, que se descobriu que o rombo era muito superior ao declarado pela ex-funcionária.
“O segundo semestre de 2018 foi uma surpresa desagradável atrás da outra, e a gente perguntava: ‘Isso não para?’”, disse o presidente da AMB.
A auditoria detectou quatro possíveis modos de atuação. Em três deles, a funcionária utilizava uma conta da associação, aberta no Banco do Brasil, que não aparecia na contabilidade da AMB. Por meio dessa conta, foram detectadas 774 transferências, realizadas entre 2008 e 2018, movimentações essas supostamente desconhecidas e não autorizadas pela cúpula da entidade.
Por meio dessa espécie de conta secreta, eram realizadas transferências para contas de empresas ligadas a ela, e pagamentos de despesas, suas e de sua família. Em apenas parte das transferências ela tentava dissimular o destino dos recursos, colocando nome de outra entidade (como Colégio Brasileiro de Cirurgia).
De acordo com o presidente da AMB, “havia várias e várias” contas no Banco do Brasil. “Ela ia abrindo e fechando, e usando disso e da confiança.”
O CNPJ e os dados bancários eram, entretanto, todos das empresas dela e das filhas, como City Hair Beauty
Instituto de Beleza e Studio Hair Beauty.
A funcionária, aponta a auditoria, também utilizava uma conta do Bradesco para transferir recursos para pessoas ainda não identificadas.
A ação de Maria Aparecida Rodrigues teria sido facilitada pelo fato de a direção da associação ser transitória, com mandatos de três anos, mas não o quadro de funcionários —que por isso têm “papel importante na entidade, já que, na prática, eram eles quem conheciam a fundo o seu funcionamento e os trâmites burocráticos inerentes ao seu cotidiano”, diz documento enviado pela AMB à polícia.
A Justiça, a pedido da Polícia Civil, decretou o bloqueio e sequestros de bens em nome de Maria Aparecida Rodrigues de sua família.
De acordo com a AMB, foram bloqueados até agora 11 imóveis e seis veículos, que não chegam a 10% dos desvios. A associação também tenta recuperar os valores desviados por meio de uma ação na Justiça do Trabalho.
Segundo despacho do Ministério Público, os “valores ilícitos desviados por Maria Aparecida devem ter adentrado no sistema bancário por meio da utilização de contas bancárias de terceiros testas de ferro, e empresas constituídas em nome destes terceiros”.