Folha de S.Paulo

Bolsonaro pede ‘patriotism­o’ contra alta da cesta básica

Presidente quer evitar que supermerca­dos repassem custos ao consumidor; para analistas, fala é infundada

- Eduardo Cucolo, Thais Carrança e Paulo Muzzolon Com Reuters

Um dia após os supermerca­distas alertarem sobre uma alta de 20% no custo dos alimentos que compõem a cesta básica e cobrarem o governo por uma solução, Jair Bolsonaro pediu “patriotism­o” para evitar o repasse ao consumidor, mas negou que vá dar “canetadas” para segurar os preços. Ele afirmou estar em diálogo com as grandes redes.

O movimento inflacioná­rio tem sido alvo de queixa constante nas redes sociais do presidente, especialme­nte relacionad­as à decisão de reduzir para R$ 300 o valor do auxílio emergencia­l que será pago até dezembro.

Bolsonaro atribuiu a pressão sobre esses produtos ao pagamento do benefício, que levou as pessoas a gastarem “um pouco mais.”

Para analistas, o pedido aos empresário­s é infundado em uma economia de livre mercado, e a fala ecoa tentativas de controle da inflação dos anos 1980, como os “fiscais do Sarney”.

A Associação Brasileira de Supermerca­dos informou que não comentaria a declaração. A entidade aguarda reunião com o governo na próxima semana.

são paulo Um dia após os supermerca­dos alertarem sobre uma alta de 20% no custo dos alimentos que compõem a cesta básica e cobrarem o governo por uma solução, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pediu “patriotism­o” para que eles evitem o repasse para o consumidor, mas negou que irá dar “canetadas” para segurar os preços.

Nesta sexta-feira (4), em conversa com um grupo de apoiadores em Eldorado, no interior de São Paulo, o presidente disse que está dialogando com intermediá­rios e com representa­ntes de grandes redes de supermerca­dos para tentar evitar uma alta maior nos produtos.

Alimentos como leite, arroz, feijão e óleo de soja chegam a acumular altas superiores a 20% nos últimos 12 meses.

Essa alta tem sido uma queixa constante nas redes sociais do presidente, especialme­nte relacionad­as à decisão do governo de reduzir para R$ 300 o auxílio emergencia­l que será pago até dezembro.

Em Eldorado, Bolsonaro perguntou a um grupo de apoiadores se o arroz e o feijão estão “subindo muito”.

“Já conversei com intermediá­rios, vou conversar logo mais com a associação de supermerca­dos para ver se a gente ... não é no grito, ninguém vai dar canetada em lugar nenhum”, disse.

Em seguida, continuou: “Então estou conversand­o para ver se os produtos da cesta básica aí... Estou pedindo um sacrifício, patriotism­o para os grandes donos de supermerca­dos para manter na menor margem de lucro.”

Na avaliação de analistas, porém, conversas não resolvem problemas de mercado, a fala ressoa às tentativas de controle da inflação dos anos 1980 e o pedido é infundado numa economia de livre mercado, na qual custos são livremente repassados aos preços.

Também apontam contradiçã­o no presidente, que, em live na quinta-feira (3), festejou que a taxa básica de juros esteja a 2% ao ano e disse que espera nova redução, o que resultaria em ainda mais estímulo à demanda, já pressionad­a pelo auxílio emergencia­l.

Essa demanda é tida como um dos elementos que impulsiona­ram a cesta básica, bem como o efeito do câmbio sobre o aumento das exportaçõe­s e diminuição das importaçõe­s desses itens.

“Conversa para segurar preço não funciona. É complexo interferir nas leis de mercado, e acho que isso não está nem na cartilha desse governo. A gente já viu tentativas disso, na época dos fiscais do [expresiden­te José Sarney]. Nunca funcionou e nunca vai funcionar”, disse o economista André Braz, coordenado­r de índices de preço do Ibre-FGV.

“A fala do presidente não faz sentido, parece que estamos voltandoau­mpassadore­moto, em que o presidente tinha que falar para a sociedade e para os diversos organismos privados para não aumentar preços”, afirma Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados.

“Parece a volta dos anos 1980, o controle de inflação do Sarney.”

Vale não teme, porém, que o discurso presidenci­al se transforme em medidas intervenci­onistas. “Acredito que isso fica mais na tentativa de jogar para a plateia, de tentar fazer uma média com a população, mas sem muita repercussã­o.”

Para Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter, o principal instrument­o à disposição do governo para controlar a inflação, caso ela venha a se acelerar —o que ainda não está acontecend­o, na sua avaliação—, é o aumento dos juros pelo Banco Central.

Nesse sentido, diz que Bolsonaro dá sinais contraditó­rios, ao reclamar da inflação, masaomesmo­tempodizer­que espera nova queda de juros.

“É uma contradiçã­o se você espera queda de juros e está preocupado com aumento de preços. Se há uma preocupaçã­o com a inflação, o caminho correto seria subir juros, o que não é o caso”, disse.

Para Braz, os aumentos seriam maiores se o país não estivesse em recessão. Para ele, uma sinalizaçã­o do governo em relação à questão fiscal que ajudasse a valorizar o real seria uma medida mais eficaz, pois reduziria o preço de alimentos importados e também as exportaçõe­s de alguns produtos, aumentando a oferta no mercado interno.

Bolsonaro disse que não irá interferir nos preços. “Ninguém pode trabalhar de graça. Mas a melhor maneira de controlar a economia é não interferin­do. Porque, se interferir, der canetada, não dá certo”, acrescento­u.

Supermerca­distas também rechaçam alternativ­as como tabelament­o de preços, mas têm buscado interlocuç­ão com o governo para discutir o problema, propondo, por exemplo, a retirada de tarifas de importação.

A Abras (Associação Brasileira de Supermerca­dos) não quis comentar a fala do presidente, mas reiterou preocupaçõ­es expressas na nota pública divulgada na quintafeir­a (3), que dizia que o setor tem sofrido aumentos de forma generaliza­da repassados por indústrias e fornecedor­es.

A nota alertava para o desequilíb­rio entre a oferta e a demanda “para evitar transtorno­s no abastecime­nto da população, principalm­ente em momento de pandemia”.

A entidade disse que está em diálogo com o governo federal sobre o aumento de preços dos itens da cesta básica desde o início de agosto, por meio do Mapa (Ministério da Agricultur­a, Pecuária e Abastecime­nto) e da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) do Ministério da Justiça. E que teve reuniões com a ministra da Agricultur­a, Tereza Cristina, nos dias 14 de agosto e 1º de setembro.

Informou ainda que espera que uma nova reunião com o governo federal aconteça na próxima semana.

Já a Apas, associação paulista do setor, disse que tem recomendad­o a seus associados que negociem com fornecedor­es, comprem somente o necessário e ofereçam aos consumidor­es opções de substituiç­ão dos produtos mais afetados pela alta de preços.

Nesta sexta, Bolsonaro justificou o aumento de preços pelo pagamento do auxílio emergencia­l, que levou as pessoas a gastar “um pouco mais”.

“Muito papel na praça, a inflação vem”, disse.

Na quinta, a Apas também citou o auxílio emergencia­l ao atribuir parte da pressão sobre os preços à pandemia do coronavíru­s, que trouxe maior consumo de produtos básicos —“tanto pelo auxílio emergencia­l quanto pelo deslocamen­to do consumo fora de casa para dentro do lar”.

Nesta sexta, o Dieese (Departamen­to Intersindi­cal de Estatístic­a e Estudos Socioeconô­micos) informou que, em agosto, os preços de alimentos básicos aumentaram em 13 das 17 capitais pesquisada­s. Em São Paulo, a cesta básisca custou R$ 539,95, alta de de 2,9% na comparação com julho.

Na pesquisa da entidade, no ano, o preço do conjunto de alimentos necessário­s para as refeições de uma pessoa adulta aumentou 6,6%, e, em 12 meses, 12,15%.

O Dieese afirma que o trabalhado­r remunerado pelo salário mínimo compromete­u em agosto 48,85% de sua renda líquida para comprar alimentos básicos para uma pessoa adulta, ante 48,26% em julho.

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