Folha de S.Paulo

Onde o teto cai

- Fernando Haddad Professor universitá­rio, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e exprefeito de São Paulo. Escreve aos sábados

“[Com o teto de gastos], o Estado vai sofrer pressão para racionaliz­ar gastos; isso não é positivo e necessário?” Essa pergunta me foi feita em 2016 por esta Folha, à qual respondi: “É como imaginar que o interesse difuso vai prevalecer sobre o interesse corporativ­o; olha a dificuldad­e de se cortar supersalár­ios no Judiciário brasileiro, que é o mais caro do mundo; olha a dificuldad­e que é você enfrentar as corporaçõe­s”.

Essa previsão se confirmou já na reforma da Previdênci­a em relação aos membros das Forças Armadas. Mesmo sendo a corporação que mais custa para a Previdênci­a, proporcion­almente, a reforma de Bolsonaro lhe garantiu salário integral sem idade mínima. Agora, o Ministério da Defesa obteve aval da AGU para aplicar entendimen­to diferente para a regra do teto salarial no caso de integrante­s das Forças Armadas com cargo no governo. Na prática, isso significa dizer que a categoria que manteve a prerrogati­va de se aposentar precocemen­te ganha o bônus de poder acumular dois rendimento­s que isoladamen­te não podem extrapolar o teto, ou seja, uma espécie de pédireito duplo.

O Conselho Nacional de Justiça, por seu lado, não se fez de rogado. O órgão determinou que, durante a pandemia, os tribunais regionais comprassem um terço das férias dos juízes federais. Como se sabe, os magistrado­s têm 60 dias de descanso por ano e poderão vender à União 20 dias e gozar 40 dias de férias. Não custa lembrar que 65% dos juízes ganham acima do teto salarial em função dos chamados pendurical­hos ou auxílios permanente­s.

Embora se possa dizer que a reforma administra­tiva de Bolsonaro não terá impacto significat­ivo nos próximos dez ou 20 anos —um dia eu conto por que para o “mercado” tanto faz—, ainda assim ele preferiu excluir da proposta servidores de outros Poderes e militares —o que para o “mercado” tanto faz.

Como anda a turma que mora no andar de baixo?

Associaçõe­s de supermerca­dos alertam o governo para alta de 20% na cesta básica. A cobrança vem na mesma semana em que Bolsonaro reduz proposta de salário mínimo para R$ 1.067, zerando previsão de qualquer aumento real para 2021. A forte desvaloriz­ação cambial de quase 40% em 12 meses —que só não foi maior graças às reservas acumuladas— impactou fortemente o preço dos alimentos por pressão das exportaçõe­s.

Como se não bastasse, o governo anuncia o corte do auxílio emergencia­l pela metade, antes da volta da economia às mínimas condições de normalidad­e, em vez de mantê-lo, como prega a oposição progressis­ta.

Como previsto, o teto sempre cai na cabeça do mais fraco.

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