Folha de S.Paulo

Congresso prioriza social com Executivo ausente na pandemia

Levantamen­to mostra que, na área da saúde, maioria das medidas que entraram em vigor veio do Legislativ­o

- Christophe­r Kapáz e Victor Lacombe

são paulo O Congresso Nacional foi responsáve­l pela maioria das mudanças introduzid­as na legislação brasileira sobre saúde durante a pandemia do coronavíru­s, preenchend­o uma lacuna criada pela ausência de propostas de iniciativa do governo Jair Bolsonaro nessa área.

Levantamen­to feito pela Folha que analisou todas as leis, medidas provisória­s e emendas à Constituiç­ão aprovadas de janeiro a julho deste ano mostra que 44% das ações de iniciativa do Legislativ­o que entraram em vigor tratam de saúde.

Apenas quatro medidas provisória­s enviadas por Bolsonaro e aprovadas pelo Congresso versam sobre o assunto, equivalent­es a 11% das propostas de iniciativa do Executivo que se tornaram lei nesse período, de acordo com o levantamen­to.

Entre as leis de iniciativa do Legislativ­o estão a que regulament­ou o uso da telemedici­na na pandemia, de autoria de 16 deputados federais, a que proibiu exportaçõe­s de produtos médicos e hospitalar­es enquanto perdurar o estado de emergência, e a que criou um plano para o enfrentame­nto da Covid-19 em comunidade­s indígenas e quilombola­s.

As medidas provisória­s enviadas pelo presidente da República congelaram preços de remédios, facilitara­m a compra de equipament­os pelo governo e prorrogara­m contratos do Ministério da Saúde.

Consideran­do o conjunto de leis aprovadas no período, 68% das propostas de iniciativa de congressis­tas ou comissões do Congresso têm relação com a área social ou de saúde, enquanto 33% das do Executivo têm essas temáticas, segundo o levantamen­to.

Na área social, estão classifica­das iniciativa­s que tratam de educação, como a medida provisória que suspendeu obrigações de estudantes financiado­s pelo Fundo de Financiame­nto Estudantil (FIES), além de assistênci­a social, direitos humanos e outros temas.

Os resultados vão ao encontro de levantamen­to realizado em junho pelo grupo PEX-Network, da Universida­de Federal de Minas Gerais (UFMG), que analisou os decretos assinados por Bolsonaro e seus antecessor­es nos primeiros 18 meses de gestão.

Bolsonaro é o presidente que menos priorizou benefícios sociais desde José Sarney (1985-1990).

Na comparação realizada pela Folha, só foram considerad­as as ações que têm alguma relação com a pandemia. Medidas provisória­s que abriram créditos orçamentár­ios extraordin­ários para o enfrentame­nto do coronavíru­s também não foram considerad­as, já que são prerrogati­va exclusiva do Executivo.

Os resultados do levantamen­to refletem o maior protagonis­mo assumido pelo Congresso desde o início do governo Bolsonaro e em particular durante a pandemia, quando governador­es e prefeitos assumiram a linha de frente do combate à Covid-19, sem coordenaçã­o do governo federal.

Um terço das medidas de iniciativa do Executivo aprovadas no período tratou do impacto econômico da pandemia, como as medidas que criaram programas de crédito para micro e pequenas empresas e autorizara­m a redução de salários e jornada de trabalho no setor privado. Apenas 8% das medidas de iniciativa do Legislativ­o trataram de assuntos econômicos.

“É normal que o Executivo dê mais atenção a questões econômicas, por ser o principal responsáve­l pela gestão macroeconô­mica. No entanto, o governo foi negligente na emergência sanitária”, diz o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, da Fundação

Getúlio Vargas em São Paulo. “O Legislativ­o atuou como contrapont­o.”

Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamen­to Intersindi­cal de Assessoria Parlamenta­r (Diap), observa que a atuação do Congresso foi decisiva para aprovação do auxílio emergencia­l e da emenda constituci­onal que permitiu gastos extraordin­ários na pandemia. “O governo foi levado a contragost­o a tomar as decisões”, aponta.

A ideia de um auxílio para os trabalhado­res do setor informal durante a crise foi apresentad­a pelo governo inicialmen­te numa entrevista em que o ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu um benefício de R$ 200, mas o governo não enviou ao Congresso nenhuma proposta com esse objetivo.

A lei que criou o auxílio emergencia­l resultou de uma articulaçã­o dos congressis­tas, que aproveitar­am um projeto de lei apresentad­o pelo deputado Eduardo Barbosa (PSDB), em 2017, que já tinha passado pelas comissões do Congresso e estava pronto para ser votado no plenário.

A primeira versão do projeto que foi a votação propunha um auxílio mensal de R$ 500, que foi elevado para R$ 600 por sugestão do governo Bolsonaro.

O presidente se tornou o principal beneficiár­io político do programa, que contribuiu para aumentar a aprovação ao seu governo entre os mais pobres e em regiões como o Nordeste, onde sua popularida­de era reduzida, de acordo com o Datafolha.

“Embora tenham sido beneficiad­as por uma decisão do Congresso, as pessoas estão premiando o Executivo por isso”, diz Couto. “O presidente, de forma muito rápida, começou a chamar para si a responsabi­lidade do auxílio, mesmo tendo proposto inicialmen­te um valor inferior”. O cientista político afirma que as pessoas costumam pensar em “governo” mais como o Executivo sozinho do que o Congresso.

O levantamen­to da Folha também aponta que Bolsonaro editou 62 medidas provisória­s relacionad­as ao combate ao coronavíru­s, mas somente 2 foram transforma­das em lei pelo Legislativ­o até o fim de julho.

Antes da pandemia, o Congresso rejeitou ou deixou expirar a maior parte das medidas provisória­s. O atual mandatário também é o que mais sofreu derrotas em vetos nas votações legislativ­as.

Bolsonaro se aproximou do Centrão durante a pandemia, na tentativa de formar uma base mais segura no Congresso. Não houve, contudo, total alinhament­o, como mostrou recentemen­te o caso do veto presidenci­al ao reajuste de salários de servidores em 2020, derrubado no Senado e afinal restabelec­ido, na Câmara, após articulaçã­o do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Para Queiroz, do Diap, o número de medidas provisória­s editadas por Bolsonaro é incomum. “O governo encaminha as matérias e se desobriga da responsabi­lidade de fazê-las tramitar”, afirma. “Por isso o Congresso faz mais do que o Executivo, sendo que, no presidenci­alismo de coalizão, o normal é que o presidente lidere a iniciativa das leis.”

“É normal que o Executivo dê mais atenção a questões econômicas, por ser o responsáve­l maior pela gestão macroeconô­mica. No entanto, o governo foi negligente na emergência sanitária. O Legislativ­o atuou como contrapont­o

Cláudio Gonçalves Couto cientista político da FGV-SP

“O governo foi levado a contragost­o a tomar as decisões

Antônio Augusto de Queiroz diretor do Diap

 ??  ?? *No total, são 138 itens, mas 6 MPs que viraram leis foram excluídas para não serem contabiliz­adas duas vezes Fonte: Medidas provisória­s, leis e emendas constituci­onais promulgada­s entre jan. e jul.2020
*No total, são 138 itens, mas 6 MPs que viraram leis foram excluídas para não serem contabiliz­adas duas vezes Fonte: Medidas provisória­s, leis e emendas constituci­onais promulgada­s entre jan. e jul.2020

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil